Cachaça(Tatiana Carlotti)
Meu avô gostava de fumar sentado nos degraus da varanda. Pouco dizia. Nossa língua era complicada demais para o italiano enraizado dentro dele. Riscava o fósforo e sumia bem ali na nossa frente. Às vezes, minha avó gritava e ele abria os olhos para confirmar se continuávamos lá. Éramos apenas nenas. Um reino de maria-chiquinhas, congas nos pés, saias prensadas.
Naquela época, meu pai trabalhava no correio e minha mãe ensinava datilografia para as moças ricas do Klabin. Ficávamos ali, boneca de pano, jardim, peteca, carrinho e a suspeita que meu avô não sabia direito quem era quem entre nós. Minhas irmãs não se importavam, tinham nojo quando o velho pigarreava e cuspia no chão do quintal. Eu não conseguia tirar os olhos daquele cuspe, vontade de passar a roda do carrinho por cima.
O velho vendia cachaça. Vinha freguês até de Interlagos conhecer sua pinga com pitanga. Paravam a Kombi lá fora e o barulho dos passos e os vidros esverdeados no engradado. Meu avô cobrava caro e quando não queriam pagar o preço certo, expulsava todo mundo, palavrão ladeira abaixo. Depois que iam embora, minha avó desabava: Và fan´culo, Valentim, và fan´culo. Ele retrucava calado e se trancava no barracão. Não era dinheiro a razão do meu avô.
O barracão era todo de madeira. Lá dentro, dezenas de barris de diversos tamanhos e aromas. Eu lembro do cheiro forte e da luz sempre suspensa. Era álcool misturado à madeira úmida e à ferrugem das ferramentas em sequência. De tudo o que me foi proibido até agora, nada se compara ao cheiro daquele lugar.
Talvez não fosse uma proibição verdadeira. A porta sempre esteve aberta e lá dentro, ele fingia não me ver cantando entre os barris. Meus dedos ficavam pretos de pó e eu tentava decifrar as letras pintadas num vermelho vivo. De costas para mim, meu avô escrevia em silêncio. O corpo encurvado no banquinho e depois de pé, rabiscando uma coluna de números na lousa verde. Minhas irmãs brincavam lá fora. Minha avó cozinhava alguma coisa. Eu e meu avô, sem saber, estávamos presos naquele aroma.
Então, numa daquelas tardes, quando eu saia do barracão, ele largou o giz e se virou imenso. Os olhos dele eram de uma transparência assustadora. Meu avô perguntou quantos anos eu tinha. Eu respondi e peguei as suas mãos estendidas. Entramos no corredor e ele despejou num copinho um dedo de pinga para mim.
Senti o odor que evaporava do copo e de repente, era aquele o cheiro que vinha dele. Quando o líquido amoleceu a minha língua, meus olhos se encheram d´água e eram as coisas todas de uma quentura amarga. Meu avô, numa felicidade estranha, deu um tapa de homem para homem nos meus ombros. Depois, arregalou as sobrancelhas e bebeu a sua dose num só gole.
Nós sorrimos cúmplices.
E, finalmente, ele perguntou o meu nome.
Tatiana Carlotti é paulistana e escreve todas às quintas na Revista Biografia e diariamente no SobremargenS.
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