Por Márcio Almeida
1: Camila, há quanto tempo você vive na França? O que você faz em Paris?
Minha “epopeia” francesa tem dois tomos: o primeiro vai de 2003 a 2006, quando vim fazer um mestrado em sociologia do direito, na Université Paris III, Sorbonne-Nouvelle; e o segundo, de 2007 até hoje, período em que preparo um doutorado em antropologia do direito, na Université Paris I, Panthéon-Sorbonne. Ou seja, exceto um interregno de quase dois anos vividos no Brasil; estou aqui ha aproximadamente 7 anos, período em que globalmente me especializei em métodos não-adversariais de administração de conflitos e em políticas públicas de acesso à justiça.
2: O que a motivou a fazer poesia?
Eu apontaria três motivos. Primeiro, acho que o ambiente familiar da minha formação foi decisivo. Não me lembro muito, mas sei da casa de meus pais sempre aberta, pessoas vindas de todos os lados, todos os registros sociais, todas as identidades sexuais, todas as profissões, etc. Alguns preconceituosos chamariam isso de “promiscuidade”. Enfim, uma atmosfera que reunia ingredientes fundamentais: vontade de fazer coisas bonitas, ímpeto para concretizar esta vontade e solidariedade para dividir méritos e deméritos das realizações.
Desta alquimia, testemunhamos, eu e meus irmãos, um pouco de tudo ser feito: teatro, poesia, escola de samba, festa de São Cosme Damião, congado e belíssimas serenatas. Ou seja, se concordarmos com o Paulo Mendes Campos, para quem um romance é “só um jeito de contar a vida”, eu poderia dizer que a história daquelas presenças foi contada de um modo essencialmente poético, a começar por minha mãe Maria Célia e meu pai Toninho.
Eu trago tudo isso comigo e me sinto privilegiada por ter nascido naquela casa, naquela família, com essa história, tal como ela é, nem mais nem menos. Segundo: a este edifício vão se somar referências carinhosíssimas e penso especialmente nas professoras "Tia" Lilia e dona Marlene Bicalho, o gosto delas pela leitura bonita, pelo português escrito claro e rico, como ele é. No Ginásio, dona Dinéia Andrade pediu-nos certa vez pra decorarmos um poema do Drummond e declamarmos no dia seguinte. Este poema se chama "Para sempre". Eu tinha 11 anos, eu o decorei, eu o declamei, eu nunca o esqueci. Até hoje, em momentos mais solitários, eu saco este poema lá dos cafundós da emoção, eu repito as palavras devagar, eu as saboreio; elas vêm comigo. Terceiro: minha avó Cicinha "desenhava" as letras, pois nunca estudou como se devia; no entanto, mais velha, ao lê-la, eu confirmei uma suspeita antiga: às vezes basta ter palavras para falar do mundo que se tem à mão, não de outro indisponível, imaginado. A poesia se acomoda das nossas ferramentas e isso é bonito.
3: Quais são as referências poéticas de Camila Nicácio?
Eu identifico, sobretudo, duas mulheres. A primeira é a Hilda Hilst. A segunda é a Adélia Prado. As duas me tocam nesses mesmos três lugares: a sensualidade com que escrevem; o destemor para interrogarem a morte; a indisciplina (ainda que devota, no caso da Adélia) para falarem de Deus. Os estilos são diferentes e para mim, luxuosos, cada um à sua medida. A própria língua é que se encanta quando Hilda diz "que mitos, meu amor, entre os lençóis; o que tu pensas gozo é tão finito e o que pensas amor é muito mais" e Adélia, "Um corpo quer outro corpo; uma alma quer outra alma e seu corpo; este excesso de realidade me confunde"…
4: Como você definiria sua forma de escrever, seu estilo?
Antes, eu escrevia poemas longos, mais rebuscados, com palavras “impossíveis de serem cantadas”, como dizia meu irmão. Ele me ajudou neste sentido, dizendo, "Mila, tá barroco demais! Vamos simplificar isso aí!" Ele insistiu até um dia em que fiz para ele uma letra de música em que eu usava a palavra "banana"... Ou seja, na minha cabeça, uma avacalhação. Ou o máximo que eu podia conceber até então. Ironia ou não: a música ficou famosa e, num show, eu percebi que várias pessoas realmente cantavam com ele. (Risos). Bom, só para dizer que acho que meu jeito de escrever corresponde ou correspondeu até aqui ao meu "jeito de corpo": antes, mais ansioso, mais complicado, mais querendo dizer coisas demais; agora, sem dúvida mais leve, mais essencial eu diria. Nos grandes centros urbanos hoje, a vida é corrida, é barulhenta e tomada, em todos os espaços, por informações demais: no meio disso tudo, me agrada uma forma mínima, que não aumente muito os volumes, mas que não deixe - sem se impor ostensivamente - de tocar as pessoas.
5: Por que a poesia é necessária?
Eu dividiria esta resposta em dois níveis. O primeiro: a poesia é necessária para mim porque ela é minha “lente” para enquadrar o mundo, e a ideia de “curtas-metragens” não é à toa. Por mais que eu tenha também um olhar prático, às vezes estratégico, às vezes mais frio ou formal, e que eu reconheça a importância disso, é com essa "objetiva" - a da poesia - que eu tendo, por excelência, a considerar os eventos, as pessoas, as coisas.
Num segundo nível, e isso não é normativo, é na verdade um ideal: a poesia é fundamental no geral porque "a coisa tá feia demais, meu amigo!", tal como dizemos coloquialmente; um individualismo à toda prova, um cinismo institucional incomensurável frente à miséria de alguns países, às guerras, ufa... Você pode contra-argumentar, dizendo que a poesia não vai resolver isso; não, não vai, mas ela pode, no espaço da nossa vida finita, trazer um sopro de encanto, pra cada um poder seguir.
6: Quais são os principais motivos do seu livro Curtas-metragens?
O livro vem como um contra-golpe de duas coisas diferentes. A primeira: estou escrevendo minha tese de doutorado, um trabalho artesanal de análise, abstração e prospecção, que pode ser muito duro às vezes e que me demanda um tipo de exercício mental diferente daquele sugerido pelo poema. Assim, entre uma leitura e uma linha escrita para a tese, fazer um poema me alegrava, fazia-me sentir forte, refeita; uma verdadeira excitação, como se eu estivesse preparada pra retomar a tese e escrever mais 20 páginas. E depois voltar e me dedicar a mais um poema. Neste sentido, você pode me considerar uma escritora "de ocasião", vulgar assim, mas não menos amorosa das palavras.
A segunda: morar aqui já há este tempo todo significa, para além dos prazeres evidentes, uma privação dos afetos que tenho no Brasil (afeto no sentido largo, os amigos, os tira-gostos nos botecos preferidos, a cor da noite). Os Curtas-metragens, eu os escrevi aqui, em francês, às vezes no metrô, saindo cansada da biblioteca, a caminho do supermercado em que faço as compras parcas da minha vida de mulher solteira num pais estrangeiro... Talvez essa relação seja difícil de se evidenciar, mas escrever esses poemas, em outra língua, com esta saudade, foi uma maneira de viver, talvez pela primeira vez, plenamente esse corte umbilical com meu país. Eu precisava muitíssimo disso, uma liberdade a mais, eu diria. Escrever em francês não nega a minha língua materna, mas me diz que coisas bonitas podem acontecer sem ela também. Ou seja, o livro é uma alegoria de uma diferenciação fundamental: deixar laços, sem esquecê-los portanto.
7: Como é a experiência de iniciar uma carreira poética lançando livro bilíngue na França?
Por enquanto, estou só surpresa e feliz... o que já considero belo como saída! Quando escrevi os poemas, não pensava absolutamente na publicação. Tudo aconteceu muito rápido. Mostrei a dois amigos, que se encantaram e me incentivaram a apresentá-los às editoras. Aqui várias pessoas já leram e apreciaram, o que me deixa muitíssimo gratificada.
Mas acho importante falar que é algo também bem “pelejado”, e que não vale a pena “glamourizar” onde não há glamour nenhum: enviei o manuscrito a 20 editoras; demoraram em média 5 meses pra responder; cansei de ouvir “não”, cada hora por uma razão diferente: “não entra na linha editorial”, “só publicamos autores do nosso catálogo”; “estamos submersos em tanto trabalho”, etc., etc. Até que recebi a resposta de duas editoras, uma francesa e uma portuguesa, dizendo que se interessavam pela publicação. Fiquei eufórica, pois o “objeto” livro é maravilhoso e, para mim, muda tudo entre enviar meus poemas a um amigo para que ele os leia no computador e oferecer-lhe um livro com uma palavra carinhosa na primeira pagina! Por outro lado, não me faço ilusões, sou estrangeira aqui, trata-se de um primeiro livro e um primeiro livro de poesia (que só circula em meios restritos): ou seja, não vai ser dessa vez que vou ficar rica com direitos autorais (risos), mas o prazer e a alegria se reembolsam facilmente.
8: Por que a questão do erotismo é forte em sua dicção poética?
O erotismo é forte porque está integrado na vida quotidiana, nos pequenos gestos, nas pequenas horas e não simplesmente reservado a um momento singular, esperado, raríssimo talvez, entre quatro paredes sempre e unicamente. Não há tabus. Ou eu deveria dizer que há menos tabus, eles se imiscuindo às vezes tão sorrateiramente nas nossas mentes e hábitos? O erotismo não significa negar os poderes medicinais do tédio e da rotina (risos) na construção das relações. Eu não parto de uma visão encantada dos encontros, mas encontrando as pessoas, eu logo dou um jeito de tentar encantar o que se deixa encantar. Por que não?
9: O que, na sua opinião, há em seu livro que possa motivar qualquer leitor(a)?
Acho que qualquer leitor pode se identificar com o que escrevi. A identificação com um texto normalmente é o que seduz. São 70 poemas, não digo que o leitor vai se identificar com todos eles. Mas com pelo menos um, e por motivos diversos, ele poderá fazê-lo. A linguagem é acessível, o suspiro atrás da linguagem é acessível. A liberdade e o desprendimento para lê-los, no entanto, são menos gratuitos e convidarão leitores e leitoras a um exercício fundamental de tolerância.
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"Nascida no Brasil (1977), Camila Nicácio tem, graças a seus pais professores, seu imaginário povoado de personagens e histórias fantasiosas desde a infância. Entre vida real e ficção, cultiva um olhar simples e afetivo sobre o mundo. Formada em direito, ela entretém o gosto pelas palavras e o amor pela língua francesa a encoraja à aventura poética que dá origem a estes Curtas-metragens." Mail de contato: camilanicacio@hotmail.com
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Márcio Almeida, 63, é mestre em Literatura, escritor, crítico de raridades, jornalista, professor universitário. E-mail: marcioalmeidas@hotmail.com
Fonte: Cronopios