Você morreu, poeta... Uma crônica da vida realPor: Valdeck Almeida de Jesus
Em plena noite de Terça da Bênção, você sai de casa caminhando até a Barroquinha. Passa pela Praça Almeida Couto, atravessa o bairro da Saúde, seguindo pela Rua Jogo do Carneiro até chegar à Baixa dos Sapateiros. Enquanto segue pela outrora mais movimentada rua de comércio popular da cidade, vai vendo a decadência nos escombros de prédios que foram, em tempos outros, lugares de encontros, sussurros, aplausos, conversas pitorescas. Hoje, só restam esqueletos de casebres e sobrados que não se aguentam. Vê o antigo Cine Pax, casas e lojas com placas de venda e um ou outro pedestre desavisado a ocupar as esburacadas e estreitas calçadas.
Sobe a Ladeira da Praça poeta; depois, pega a Rua Ruy Barbosa, seguindo para a Praça Castro Alves, com um sol de fim de tarde se escondendo no horizonte. De tão fracos, os raios solares não incomodam tanto; antes, acalentam o chegar da noite e convida para seguir escuridão adentro. Cuidado, poeta, o crepúsculo pode enternecer e fazer você, simples e ingênuo, achar que as estrelas estão ao alcance da ponta do dedo. Segue, vai ouvir poesia e depoimentos sobre e em homenagem a Ildásio Tavares, pois o evento está já pra acontecer.
Encontre os amigos Jorge Carrano, Márcia Menezes, Jucilene Santana, Tina Tude, Adriano Eysen, Douglas de Almeida, Carlos Souza, troca dois dedos de prosa, curte o momento, aplaude aos poetas e músicos, sorri das irreverências de Ildásio, contadas por quem o conheceu e conviveu com ele. Mas tua hora está chegando, vai embora, que o tempo é curto. Caminha de volta, agora pelo Terminal Barroquinha, depois segue a Rua Baixa dos Sapateiros em direção à Ladeira de Santana. Evita, porém, a Rua do Gravatá. Quem conhece, conhece. E sua intuição pede para arredar pé dali.
Desvia das armadilhas desta cidade que você não conhece mais. Muda as andanças e foge, cria atalho, pois você pode ser pego a qualquer hora, nessas ruas semi desertas de Salvador, que você não conhece mais. Andar às 21 horas, mesmo no playground do prédio onde mora não é mais seguro. Não falei, poeta. Perto do Shopping Baixa dos Sapateiros, um drogado de rua ataca você, aponta para sua cara uma faca peixeira e avança. Sua hora, poeta, pode ter chegado. Cuidado, pois você não é super-homem, não tem poderes especiais. Tenta, segura no punho dele e ouve os gritos dos passantes chamando pela polícia. Mas a polícia, poeta, a esta hora, pode estar longe, protegendo outras áreas da cidade que você não conhece mais.
Luta com ele, poeta. Tenta firmemente prender o braço do assaltante para que a faca não alcance seu peito. Você ainda quer viver e este instinto pode lhe salvar, mesmo que você saia ferido, que sangre na calçada ou apenas esgote as energias... Mas luta, poeta, até o fim. Não esmoreça; não entregue os pontos e não se deixe vencer assim tão fácil. Lá vem o comparsa dele, poeta. Ele vai tentar te roubar os pertences, enquanto o outro amedronta você com a lâmina da faca roçando seu rosto, ameaçando derramar no chão imundo suas tripas, fígado e coração. Amanhã, alguém vai pisar nas manchas ou fazer cara de nojo. Será, poeta, que a hora é chegada? Não vão conseguir levar dinheiro, documentos, telefone, mas vão levar sua inocência, poeta. A camisa que você vestia, escrita “Amizade”, virou lixo, toda rasgada e suja pelas mãos imundas dos dois assaltantes. Agora é hora de acordar e assumir: a cidade é perigosa de dia, de noite, na rua, na praça... Você morreu, poeta...
Salvador, 24 de janeiro de 2012, 22:20hs