Salvador ainda é uma cidade mágica
Por: Valdeck Almeida de Jesus (*)
No meio do caos do trânsito, violência urbana e dificuldades próprias de uma grande metrópole, a cidade ainda inspira muita alegria e felicidade
Salvador foi a primeira capital do Brasil. Depois vieram Rio de Janeiro e, finalmente, Brasília. A cidade é a terceira maior do país, atrás, apenas, de São Paulo e Rio de Janeiro. Falar da capital da Bahia, para mim, é tentar voltar ao passado recente, no ano de 1993, quando cheguei aqui e nada entendi, como diz Caetano Veloso em música dedicada à cidade de São Paulo. Recém empossado no primeiro emprego público, desembarquei na rodoviária com bagagens, malas e sonhos que não cabiam num ônibus. Pedi ajuda a amigos e familiares para carregar minhas coisas, mas eu mesmo não tive coragem de acompanhá-los no trajeto para minha nova casa.
Depois de instalado no novo apartamento eu comecei a palmilhar a cidade que eu conhecia muito bem através de mapas e notícias jornalísticas. Com olhos de turista, vivenciei as festas, praias, diversão e o povo, tentando me acostumar com a paisagem, o fervilhar de coisas acontecendo por todos os lados. Não foi fácil estar aqui nesses dezenove anos. Eu vim pra morar definitivamente, mas sempre me dá vontade de ir embora, procurar um lugar menos turbulento para viver. Esta contradição é própria da alma de Salvador, uma cidade que sucumbe ao progresso, soterrando os rios, tentando virar uma menina de vinte anos, apesar de já ser uma senhora com mais de 400 anos.
É triste ver a agonia dos casarões se desmanchando com o tempo; os carros invadirem todos os becos, calçadas, ruas e jardins; a pressa tirando o prazer de olhar e curtir a paisagem. Caminhar, no entanto, é inevitável, e Salvador não pode parar. O preço de se transformar é muito alto. Por conta da má distribuição da renda, herança de tempos em que o país foi loteado entre os poderosos, muita gente ainda vive na miséria absoluta, enquanto alguns possuem mais do que podem consumir.
Mas a esperança de que toda a população possa desfrutar da riqueza de Salvador ainda persiste e muita gente luta todos os dias para tornar a capital da Bahia um lugar digno para seus moradores. Talvez a chama que alimente este sonho seja o motivo de a cidade ser tão mágica, apesar de tudo...
Toda a magia e contradição da cidade, no entanto, vira material de criação para poetas e escritores, que se inspiram no cotidiano de Salvador para criar e recriar obras fantásticas. Jorge Amado foi o maior exemplo de escritor que se inspirou na capital baiana, na Cidade Baixa e na vida de pessoas do povo para compor seus personagens e lançar livros que viajaram pelo mundo todo. Eu mesmo tenho seguido este exemplo e lancei, recentemente, o livro “Sim, sou gay. E daí?”, inspirado em “Alice”, nome fictício de um homossexual que frequentava o Centro Histórico da cidade, de bar em bar, nas festas de pagode e samba no Pelourinho, nas praias do Porto e do Farol da Barra, nos cinemas da Baixa dos Sapateiros, em busca de amor e sexo. Onde havia festa Alice estava lá, na tentativa de encontrar o grande amor de sua vida. A luta desta personagem, em meio ao caos urbano, me fascinou muito e, por isso, registrei sua história em livro, para perpetuar um lado de Salvador que poucos conhecem ou desejam ver exposto em livro...
O carnaval de Salvador é outra magia, festa na qual se misturam pessoas de vários estados e países, num total de dois milhões de rostos diferentes, pulando atrás de bandas de música, bebendo e dançando por oito dias consecutivos. Esta festa já é a maior do mundo, de acordo com o Guinness Book e atrai cada vez mais adeptos. Há lugar para todo mundo. Quem tem muito dinheiro fica em espaços com segurança, médico, boate, comida e bebida à vontade. Quem tem pouco dinheiro fica dançando nas praças, no meio da rua ou na janela de casa, para não perder um só minuto da festança. A festa inspira muitas criações artísticas.
O carnaval termina, mas a magia continua nas imagens das ruas estreitas, o grande fluxo de pessoas e veículos circulando, a luta pela sobrevivência diária. Esta aparente confusao se transforma em arte quando cai nas mãos de Bel Borba, Gilberto Gil, Mário Cravo e do saudoso Dorival Caimmy... Do lixo ao luxo, Salvador é a mãe de muitas artes e ainda vai alimentar a Terra com seu caldeirão cultural. Se o mundo acabasse e sobrasse somente Salvador, certamente aqui teríamos material humano e artístico para reconstruir o universo...
(*) Valdeck Almeida de Jesus é jornalista, escritor e poeta. Autor dos livros “Memorial do Inferno”, “Sim, sou gay. E daí?”, dentre outras obras. A inspiração vem da convivência diária com artistas e paisagens de Salvador, bem como de suas andanças pelo mundo como a recente viagem à Suíça, onde participou do 26º Salão do Livro e da Imprensa de Genebra.