Eduardo Quive entrevistado por Félix Maranganha
A pessoa: Eduardo António Quive nasceu em 08 de junho de 1991, na cidade de Maputo, capital de Moçambique. Pertence à etnia dos ma-changanas, mas o mesmo disse ser um união de várias etnias, dentre elas também a etnia Ronga. Tem poucos amigos. É católico, com vivência em outras religiões e tradições, e de pensamento liberal, vendo a fé como um meio de moldar as pessoas na sociedade. É formado em jornalismo com o ensino pré-universitário concluído. Age também como dinamizador cultural, além de ser ator e escritor. Ele reside hoje no bairro de nome Patrice Lumumba, na cidade de Matola, província de Maputo. Carrega um alto sentido de valor da vida, sensibilidade, integridade e humanismo. Acredita que o ser “pessoa” está associado ao meio em que vive. Por ser africano, especialmente moçambicano, vê os valores, principalmente os morais, como de suprema importância. O Ser, o estar, o fazer, a atitude e gestos, é essencial na afirmação de um homem. E então um indivíduo, nesse contexto é feito pelos seus valores. Familiarmente, considera-se um “distraído”, por não gostar de se prender às regras e buscar sempre a independência. De família de origem humilde, trabalhou desde cedo, envolvendo-se integralmente com o jornalismo desde os 16-17 anos, e iniciando seu trabalho como promotor de eventos aos 19.
O leitor: Eduardo descobriu a literatura aos 15 anos pelo conto “Laurinda tu vás mbunhar” de Sulemane Cassamo, que o levou a ler mais tarde o livro inteiro, “O Regresso do Morto”. Depois começou a aumentar seu interesse pela leitura com livros como “Xicandarinha na Lenha do Mundo”, de Calane da Silva. Só aos 20 anos de idade, em 2011, é que Eduardo conseguiu dinheiro para comprar o livro. Mas seu interesse pela leitura vem desde os oito anos, quando trabalhou como vendedor de jornais, e aproveitava para ler os leads e as páginas culturais. Seu interesse central é a leitura de autores moçambicanos, principalmente devido à sua ligação com as políticas de leitura em Moçambique. Não se acha um bom leitor na Filosofia, mas um bom apreciador de pensamentos filosóficos. Entre seus filósofos mais lidos estão Adam Smith, Aristóteles, Augusto Comte, Friedrich Nietzsche e o moçambicano Severino Ngwenha. Além deles, gosta de Montesquieu, Lênin e Karl Marx.
O escritor: Enquanto escritor, está nos preparativos para lançar seu primeiro livro de poesia, “Lágrimas da Vida, Sorrisos da Morte”, uma espécie de provocação pessoal e social, e que visa levantar o debate literário sobre as temáticas da poesia moçambicana. Antes de mais, considera-se mais um contador de histórias, que herdou de sua avó, e menos um poeta, um romancista e um contista. Sabe apenas que conta histórias da forma como ela convém ser contada. Se preocupa apenas com o texto em si. Se não for para escrever não escreve. É membro fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, e atuante em saraus e incentivo à leitura.
FM: Quando entramos em contacto, você falou que considera o ser "pessoa" como uma palavra. Poderia explicar isso melhor?
EQ: Não só considero como vivo isso. Toda palavra tem alma e ela é que faz a “pessoa” em nós. Mas é importante perceber também que a palavra que aqui me refiro não só a falada, mas é a vivida. Os gestos, os modos, sentimentos e etc. a palavra, para quem a conhece, sabe que ela tem isso: Vive, age, sente entre outras coisas.
FM: Você me falou: "o Ser, o estar, o fazer, a atitude e gestos, é essencial na afirmação de um homem. E então um indivíduo, nesse contexto é feito pelos seus valores". Você tenta transpor isso para a sua literatura?
EQ: De algum modo. Mas se calhar empiricamente. Como o que até chega a me surpreender depois de escrito. Quando escrevo bem antes de pensar nisso, penso em somente, dizer o que me vai na alma e aí, vai surgindo em forma de decalque todos esses conceitos. Em todo caso tenho sempre me preocupado em transmitir não só os sentimentos, mas os pensamentos. Eu me guio pelo sistema nervoso. Se me firo no pé, as dores apesar de lá virem, afectam todo o estar, desde ao coração e a cabeça. Todos sabemos que o que guia o pé é o cérebro e o cérebro como todos também sabem está na cabeça. É importante compreender que o próprio ser homem também obedece isto. Aí entram os valores que me referi nessa afirmação. O ser, o estar, o fazer, a atitude os gestos e em diante.
FM: Ao dizer que possui muita fé, não pude deixar de perguntar: qual a sua religião? De que modo ela se insere em sua vivência artística?
EQ: Eu sou cristão. Sou da Igreja Católica. Agora uma coisa é, deixo o que sou na minha alma e por onde ando levo a diversidade, abertura e acima de tudo, a compreensão. Durante os últimos tempos que tenho vivido, os acontecimentos que se passam comigo, voltei a fazer-me uma pergunta, porquê vivo? E respondi sem receio, vivo para compreender o outro. Viver é conviver. O que quero dizer é que sempre que a arte me chamou, mesmo que seja para por de lado uma missão religiosa me ponho a andar pelas artes. Logo o artista que sou não se dissocia do crente que sou, mas não é refém. Fé vem da alma, sente-se e não se faz. Tanto que já entrei numa mesquita para apresentar peças teatrais com amigos. O mesmo que já fiz na Igreja Universal do Reino de Deus, Assembleia de Deus e até na minha igreja. Eu sou artista em pronto. A minha fé não depende de onde ando e o que faço. Deixe-me só aproveitar dizer algo importante: o mundo hoje está a viver coisas estranhas: guerras justificadas como religiosas. Mas isso acontece por falta de diálogos inter-religiosos. Sinto que nós fazemos da fé motivos de guerra e não de paz e união. Não consigo entender como é que o segurar numa arma e tirar a vida de outro porque é cristão ou muçulmano pode-se justificar em nome de Deus.
FM: Você é um membro arredio da família, faz parte da etnia changana, mas disse uma vez ser uma fusão de Rongas e Changanas. Além disso, vive em um país repleto de línguas oficiais, e você próprio já afirmou ser um bilíngue de berço. Qual sua relação com as línguas que você fala?
EQ: Sou uma fusão de Ma-Rongas e Ma-Changanas. Mas é importante entender uma coisa. Os pais do meu pai são Ma-Ndaus, da Beira, a centro de Moçambique (é de lá onde vem o meu apelido). Mas o meu pai, nasceu, cresceu em Gaza (sul de Moçambique) o que lhes torna Ma-Changanas. Ele vem para Maputo, casa-se com minha mãe que é também de Gaza e chegamos nós. Somos Ma-Rongas. Mas há uma coisa cá entre nós moçambicanos, o que conta num filho é de onde vem o pai, não sei se entende. Daí o ter dito na última vez que sou apenas Ma-Changana. Mas eu aventuro-me nas três etnias. Ndau, Changana e Ronga. Pelo-menos o Ronga e Changana, embora línguas que me eram proibidas dentro de casa de fazer uso, falo-as e acho que muito bem. Tanto que um dos prêmios de poesia que venci no ano passado, o da Itália mandei o poema traduzido de português para Ronga. Então, as línguas que eu falo, em particular essas étnicas, são como o saber dizer quem sou. Tenho que confessar que as vezes sinto que ao ser proibido de falar essas línguas até aos 12 anos de idade, foi uma tentativa de me dissociar da minha própria história. Daquilo que é o eu que sou. Hoje seja em distritos da província de Maputo ou em Gaza, sinto-me nativo e falo as respectivas línguas alegre de me ver dentro do diálogo. Quem sabe um dia aprendo até a língua dos Ma-Ndaus!?
FM: Já pensou em escrever um livro em sua língua nativa?
EQ: Nunca me passou pela cabeça. Mas seria interessante. Nos últimos tempos tenho mantido uma grande interação com a cidade de Xai-xai, capital da província de Gaza, terra dos Machanagnas. Tenho participado em noites de poesia que até vou com alguns membros do Kuphaluxa. Existem lá jovens que declamam poesia em Changana, só não sei se eles conseguem escrever. Mas cheguei a procurar saber disso afim de que publicássemos na Revista Literatas. Mas também como lhe disse na questão anterior, eu fui um dos vencedores do prémio Nósside-2011 que é um prémio de poesia da Itália. É obrigatório para todos participantes desse concurso escrever os poemas em suas línguas locais. E eu escolhi o Ronga. Penso até em publicar o poema nessa língua, mas já se calhar com ajuda de pessoas especializadas.
FM: Interessante como, através de você, comecei a ouvir nomes de escritores moçambicanos além de Mia Couto. Suleiman Cassamo, Calane da Silva, Ungulani Ba Ka Khosa, Mukwarura, Alexandre Chaúque e Eduardo White. Os que andei pesquisando e lendo na internet têm um estilo ímpar e uma prosa que conquista no ato. Por que, mesmo diante de tanta qualidade, os autores Moçambicanos são pouco divulgados no mercado editorial de outros países?
EQ: Antes vou referir-me ao discurso de um grande crítico literário e bem conhecido entre nós, António Cabrita. Para ele, em Moçambique há falta daquilo que se pode chamar de instituição literária. Isso serviria como uma máquina primeiro de valorização dos autores e de fazer com que o escritor seja aquele que ganha com o trabalho que faz. Ele chegou a dar exemplo de Calane da Silva que é professor universitário, é investigador, é diretor do Centro Cultural Brasil-Moçambique, é membro de sei lá quantas organizações nacionais e internacionais, é jornalista e escreve para um número incontável de revistas e ainda está envolvido como organizador dos maiores eventos literários do país, falo da única grande feira do livro que aqui temos. E quantos anos têm? Creio que sessenta e alguma coisa. De acordo com Cabrita, um Calane da Silva que já lhe disse o que faz, não tinha que estar por ai, tinha que estar em casa sentado a dedicar-se se calhar somente à escrita. E por assim ser, não passar mal de fome. Mas não o homem tem que fazer tudo isso para ter boa vida. Penso que esse exemplo serviu para mostrar também o porquê desses autores não serem conhecidos fora até dentro de Moçambique. Olha que os que falei são os que pelo menos são lembrados quando se fala de escritores por aqui, com a exclusão do Mukwarura que está ainda no seu primeiro livro e que nem se quer se fala dele. Se houvesse uma instituição que fosse literária, quem sabe num dia se lançava livros, e noutro víamos ensaios e criticas sobre os mesmos? Faziam-se eventos que envolvessem escritores para a sua divulgação? O mais triste, é tinha que ser Brasil, que é um país falante da mesma língua com os moçambicanos a saber da nossa literatura e imagine os outros? O que acontece aqui em algum momento tem se vivido o “cada um por si”. Se o Mia Couto é conhecido por ai deve-se ao seu próprio esforço porque ninguém fê-lo por ele. Então, é isso que os outros devem fazer, mas esse é outro debate. As vezes noto que em Moçambique, o escritor está parado no tempo, não em termos de produção literária, mas sobre o próprio conceito de ser escritor nos dias de hoje. Não se justifica, acho eu, que um escritor do nível de Mia Couto, Ungulane, Calane ou Paulina Chiziane, não tenham por exemplo, nem se quer um blogue ou site. Ou então que existam páginas moçambicanas que façam isso. Até podia ser a da Associação dos Escritores Moçambicanos, entre e verá com os próprios olhos que é que lá tem. Falei tanto sobre este assunto porque toca-me profundamente. Hoje que chego a editar uma revista literária, noto com mais evidência que sobre Moçambique literário, as pessoas de fora sabem muito pouco ou quase nada. E todos intervenientes sabem disso, mas parece que caíram no comodismo. Justamente agora que o mundo está cada vez mais pequenos, nós ficamos de fora.
FM: Quando criança, eu gostava de me sentar na varanda do sítio do meu avô e ouvir os vaqueiros, os plantadores e os demais trabalhadores rurais contarem histórias dos antepassados, das genealogias, das lendas locais, das caçadas, das pescarias. De certa forma, aquilo me enriqueceu enquanto pessoa, pois, como meu tio-avô gostava de dizer, a leitura não está somente na letra, está também no mundo. Você disse ter tido a mesma experiência com sua avó. Como foi essa experiência?
EQ: Crucial. Vitalícia. Levo-a comigo para onde vou e pretendo leva-la para outras gerações. A isso eu chamo de valores imateriais. O mundo não me arrancará e vou leva-los comigo e deixa-los com quem passar de mim. Com a minha avó aprendi as leis da vida. Aprendi a ser eu na terra e há escola igual? Hoje Moçambique está em entrar num colapso com os formandos a serem a penumbra duma nação em surgimento. Pena que o debate sobre isso só vem a ser feito quando estamos no final do ano lectivo e vé-se que as mais que a metade de estudantes reprovou e os que passaram não enchem nem uma colher de conhecimentos. Tanta mediocridade multiplicada. Mas acho que isso deve-se também ao facto de a família estar a perder o seu valor na formação do Homem. Em África uma pessoa quando fica idosa, naqueles tempos era tida como um Deus na terra e a sua palavra não era questionada. Era tida como a última. Mas hoje, isso mudou. O idosos é aquele que é o imoral. Feiticeiro. Não presta. É suspeito de todos azares que gira em nossa volta. Não os queremos de perto. Eles atrapalham. São atrasados. É isso que se vive aqui. Eu só comecei a saber que existem asilos para idosos através das novelas brasileiras, mas nunca antes ouvi isso neste país (Mia Couto fala disso em “A varanda de Frangipai"). Então a minha avó que ontem foi quem edificou este homem que sou com as suas estórias em volta da lareira, provérbios e sátiras, hoje para outros é aquela que lhes causa doença, desemprego, infertilidade, azares e morte. Deus já não faz nada disso e nem a vida. São os velhotes, como se tem dito. Mas eu honro a terceira idade e sei o que está em por detrás daquelas rugas. Muita vida e vitais ensinamentos. Eu aprendi a ser eu na base disso.
FM: Sua trajetória enquanto leitor não foi fácil. Leitor tardio, observador de leads de jornais e vivendo em um país em que os livros custam a ser conseguidos. No Brasil, duas ditaduras formaram um povo que não lê porque não gosta e em que os livros são caros e inacessíveis. O que pensa a respeito da formação de leitores em países com históricos recentes de ditadura? Quais caminhos você proporia para "reacender a chama da leitura" em um povo que se iletrou?
EQ: De tantas perguntas difíceis que já respondi, esta é que considero mais difícil ainda. Salvo-me pelo facto de esta não ser uma entrevista ao vivo, porque assim até deixo para depois (risos). Há duas coisas essenciais que um indivíduo que lê tem em si: idoneidade e senso crítico. Meu caro, nenhum político ditador pode compactuar com isso. A isso ele olha como uma “ameaça” para os seus planos. Não será isso que os povos africanos já começam a ter? capacidade de questionar? Analisar e exigir? Aqui vive-se uma política saudosista, onde os povos tem “dívidas”com os seus respectivos líderes e por causa disso, estes só consomem o que os ditadores querem. E o livro é o primeiro a ser negado a esses povos. Em Moçambique a importação do livro não tem nenhum custo aduaneiro. Mas os preços agridem o cidadão. Essa é a minha percepção sobre isso, se calhar se adeque a situação vivida por vocês aí. Mas a verdade é que formar leitores nessas condições é muito difícil, pior ainda se se enfrenta um outro problema: FOME e POBREZA. As vezes tem se tido erradamente a ideia de que só se combateria a fome, por exemplo, indo-se a machamba. Combater uma doença passa por primeiro adoecer e ir ao médico. E por ai. Agora é importante que se desperte para “um mundo novo” e como diz Cristina R. Durán na revista Pessoa “ Ler rompe muros”. Os povos devem ter em conta que estão a caminhar e no meio da rua tem um muro invisível a fechar o seu sucesso e vitória. Esse muro não se pula, está sempre a nossa frente. Precisamos de um livro para saber onde ele está e por onde podemos passar para chegar lá. E lendo nós rompemos essa parede e alcançamos o verdadeiro desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem liberdade.
FM: Fale sobre o Movimento Kuphaluxa.
EQ: Kuphaluxa – significa Disseminar, daí o nosso lema: “dizer, fazer e sentir a literatura”. Movimento Literário Kuphaluxa é uma agremiação artística literária que tem como fim divulgar e estimular o gosto pela literatura e sem fins lucrativos. Fundado em 2009 e apadrinhado pelo Centro Cultural Brasil – Moçambique, o Movimento Kuphaluxa, norteia-se pelos objetivos principais de, promover a literatura moçambicana na diáspora; incutir o gosto pela leitura no seio dos jovens; promover e divulgar novos aspirantes do mundo literário em Moçambique, bem como, permitir o intercâmbio entre amantes da literatura moçambicana e de outros países de língua portuguesa, com o principal enfoque para o Brasil. Para a consolidação desses objetivos, o movimento, desenvolve várias ações nas escolas, nos centros culturais, nos bairros e outras instituições e lugares de acordo com projetos concretos, como é o caso das cadeias, onde oferecemos livros e revistas literárias como forma de incentivar à leitura e permitir o livre e fácil acesso ao livro. Como o nosso movimento é, maioritariamente, constituído por jovens com um grande envolvimento na produção literária (declamadores, contadores de estórias, escritores nos diferentes gêneros literários), nos destacamos na participação de eventos culturais, não apenas virados a literatura, como forma de divulgar e promover estes artistas e servindo-se dos eventos para chamar a atenção sobre o que diz respeito a valorização e consumo do patrimônio literário nacional. O Kuphaluxa tem como missão tornar Moçambique num país de leitores.
FM: Há outros movimentos em atividade em Moçambique (ou na África) que mereçam ser citados?
EQ: Bem em Moçambique até existem. Mas há diferença nos conceitos. O Movimento Literário Kuphaluxa é pelo ativismo literário dentro e fora de Moçambique, pelo que tem beneficiado mais a o que já existe na literatura e muito pouco do que ainda não existe. Nós sonhamos com uma sociedade de leitores e não de escritores. Tanto que o nosso lema é ler, ler, ler e ler. Mas existem os Poetas de Alma que tem exercido as suas atividades no Instituto Cultural Moçambique-Alemanha (ICMA) na capital. Esses são mais declamadores e escritores dedicados a poesia com ritmo (Ritmo, Arte e Poesia). Existe também na capital o Nkaringana Arte, um grupo também muito criativo também de declamadores. Esses dois grupos têm dias fixos e que o público já sabe em que eles promovem as suas atividades uma vez por mês. Em Gaza existe a Associação Cultural Xitende, muito ativa e admiro eles porque conseguem fazer com que o poder executivo também se envolva na literatura naquela província. Eu convivo muito com eles e o Kuphaluxa também. Por outros cantos de África tenho pouca informação. E acredito que acontece o mesmo com eles sobre Moçambique. Há pouca, quase que nenhuma, interação entre nós no continente. O Kuphaluxa, por exemplo, conseguiu receber 4 escritores em 2011 provenientes do Brasil e que muito nos conheciam, mas nunca conseguiu trazer, Angolanos, Cabo Verdianos entre outros. Mas agora com a realização do primeiro Festival Literário de Maputo, acreditamos que bons tempos virão. Por outro lado, o Kuphaluxa está em contacto com a direção do IILP- Instituto Internacional de Língua Portuguesa a fim de criar programas de intercâmbios entre os países de língua portuguesa, em particular os africanos.
FM: Você acredita que a literatura deva ser construída como? Um processo de fuga da sociedade? De identificação? De mudança?
EQ: Acho que uma coisa aliada a outra construiria a literatura. Mas penso que se ela fosse construída de identificação seria mesmo um grande ganho. É certo que muitas vezes ela é tida como uma fuga da sociedade e até aliada às mudanças. Mas eu penso que mudança está mais para política e economia. A literatura não se construiria só pela mudança. Mais do que a Mudança ela precisa de evolução. Coisas que não vêm da força humana. Fluem naturalmente, com os tempos. Agora se viesse da identificação talvez fosse algo tão forte que é move mundos como a política. As coisas que constituem ou vem de uma identidade é mais nossas e é nossa obrigação preserva-las. Mas o que vem da mudança ainda pode ser alvo da problematização.
FM: Tudo começou com a voz humana, depois vieram as cavernas, o artesanato, a argila, o barro, o osso, o papiro, o códice. Hoje, temos os celulares, a internet e a TV. O que acha desses novos suportes para a literatura, eles chegam a influenciar o texto, ou o texto existe independente do suporte?
EQ: O texto chega a ser o centro de tudo. A essência. Sem o mar não existe o pescador. A escrita sempre fez um esforço para ser autônoma. É verdade que hoje com o celular escrevemos onde quer que estejamos. Com a internet também idem. Até onde podíamos só brincar, podemos ter o texto. A TV, mesmo que se aventure na imagem, o texto encontra-se no centro das exigências. Aí está. O texto sempre foi autônomo e nunca refém de nada, tanto que, mesmo antes dessas novas tecnologias ele sempre existiu e resiste. Mas agora, até quando? Já que o mundo está cada vez mais preguiçoso, tanto para escrever, assim como para ler. E as tecnologias vão ajudando o quanto podem para que isso aconteça. Mas também temos que reconhecer que elas nos facilitaram muita coisa. O acontecer desta entrevista é o exemplo disso e é o texto que nos faz comunicar.
FM: Você gosta mais de literatura canônica, não-canônica, popular ou de literatura oral?
EQ: Para falar a verdade um pouco de todos gostos se encontram em mim. Gosto de literatura e pronto. Agora os seus estilos e modos só servem com a disposição que tenho no momento.
FM: Você falou que seu livro a ser lançado, "Lágrimas da Vida, Sorrisos da Morte", falará, dentre outros temas, de política, religião e sociedade, como uma provocação. Fale mais sobre sua obra?
EQ: Bem, se calhar se pudesse entrar numa penumbra se se olhasse para os termos Vida e Morte e depois se olhar para Política, Sociedade, Religião e Sociedade. Mas como também disse é uma provocação a mim mesmo, porque mais do que observador, sou parte dessa sociedade e para quem conhece os meus poemas que pouco divulgo, sabe que não saio dessas áreas todas. Carrego com isso pelo jornalista que existe em mim. Eu encontro-me em mais ou menos três pessoas: Eu sou escritor – escrevo, vivo vidas desconhecidas, dramatizo, crio e estou inserido numa sociedade organizada, política, economia, religiosa e culturalmente. Eu sou Jornalista – escrevo, narro factos reais, participo em grandes acontecimentos sociais, janto ou almoço com o presidente da república, mas também sou aquele que convive com mendigos e crianças órfãs, observo e analiso, mas também vivo essas faces com que a sociedade se apresenta. Eu sou cidadão comum – tenho necessidades como qualquer jovem da minha faixa etária: mulher, dinheiro, acesso ao ensino, hospital, transporte e outros serviços públicos, problemas familiares e pessoais, desemprego ou más condições de trabalho, falta o que comer, etc. Então tudo isso está em mim. Eu passo por isso como uma maioria dos moçambicanos. Isto pode-se encontrar na obra, mas não em jeito de relato com o tema hospital, a escola, em fim. Mas acima de tudo como bem disse, reflito sobre o mistério que gira em torno da morte. O quanto ela é temida, mas em alguns momentos desejada. Em África um morto é eternizado e tornado Deus. Fazem-se rituais de estranhar em muitas coisas. Isso passa-se na sociedade em que vivo. Só mais uma coisa, nesta obra falo muito de mim. E creio que com mais atenção verão o quão isso está explícito. Conto histórias por mim vividas e por pessoas próximas. O facto de querer começar com este livro, é mesmo porque eu e ele vivemos a mesma estória. Aqui lhe dou dois poemas que fazem parte da obra: [em anexo no final da entrevista]. Talvez dizer que o livro será lançado sob a chancela da FUNDAC – Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural, uma instituição do governo.
FM: Qual a diferença entre contador de histórias, poeta e romancista?
EQ: Sinceramente eu acho que contador de histórias é um dom que precisa duma técnica muita rara de se ter: natureza. É isso poder contar histórias é tão natural que chega a ser difícil de se aprender. Quando muito, cultiva-se durante a vida. Poeta é saber ser ninguém. É sair da lucidez sem deixar de ser sedentário. é ser um imigrante. Apátrida. Romancista é consequência da vida. E até se pode aliar ao contador de estórias. Só quem vive pode o ser. Porque um romancista assim procede. É um criador. Dá vida à morte. E torna a palavra num ser em nós. Estas são apenas humildes opiniões de quem já conviveu com esses mundos. Nem tanto como escritor, mas como leitor.
FM: Você afirmou que lê muitos autores moçambicanos, mas que também lê muitos autores estrangeiros. Tem conhecimento dos movimentos literários contemporâneos? Alguma opinião a respeito? Tem opinião formada sobre as novas tendências da literatura?
EQ: Bem terei dito que de fora acompanho muito pouco. Mesmo a distância. A minha meta pessoal é descobrir o que temos por aqui. Mas as vezes o que acontece é que leio algumas obras moçambicanas e encontro citações de alguns autores. Leio ensaios e criticas literárias sobre algumas obras moçambicanas e encontro comparações com escritores de outros países aí sim, vou a busca desses para fazer parte do debate. Por enquanto tenho me baseado nisso. Contudo tenho em primeiro lugar, que dizer que a literatura está em contínua libertação. Ela não é presa aos dogmas. Mas também pode-se encontrar na literatura contemporânea algo que a muito já se fez. Eu podia citar uma coisa da obra “ Roseiral” do José Inácio Vieira de Melo, ele é brasileiro. Ainda encontramos a viagem pelo mundo utópico, pelo espaço ainda vago que a poesia clássica nos mostrou um dia. Comparo essa obra com a de um autor moçambicano Adelino Timóteo que escreveu o “Dos Frutos de Amor e Desamores até a Partida”. Mas eu penso que não tem nada de antigo nessa forma de escrever, tem sim, uma evolução, que já me tinha referido. Um escrever que trás ternura e tempestade na alma. Em fim. Os tempos confundem-se mas as obras e os autores penso que não. Elas são de hoje e lá encontramos esses vestígios. Beneficiando-se do facto de ser jornalista, tenho tido oportunidade de receber várias obras a surgirem no mercado. Pelo menos os últimos lançamentos quase que tenho e vejo uma “insurreição” literária, pelo menos em Moçambique. Isso acho bom.
FM: Você sente algum bloqueio ou dificuldade na hora de escrever? Como faz para superar isso?
EQ: Sinto sim. Tem vezes que escrevo e não sei terminar. Vou escrevendo e não sei colocar um ponto. É um, tremendo sofrimento. Mas isso me beneficia porque não se trata de nenhum esforço. É inspiração. Exacerbada mas é. Mas também há aqueles dias em que o problema é o que escrever para fechar um parágrafo e encerrar um capítulo ou um conto. Aí não me esforço paro. Habitualmente escrevo na madrugada a ouvir uma música. Aliás esse é outro segredo. O meu silêncio quando escrevo tem que ser das conversas, mas nunca da música. Mas então, por exemplo, de repente não sei mais o que escrever para fechar um parágrafo de um texto, paro e saio para o quintal sem camisa e descalço. Vou a cozinha e tomo chá. Levo a chávena no quarto e vou tomando em quanto releio o texto. Aí em mais leitura, ganho ideias e coloco de seguida. Penso que o ar puro que sobra de noite apanhando-o no quintal escuro e depois uma chávena de chá ajudam-me a sair daquilo que estava a escrever. Ajuda-me a abandonar a obra e concentrar-me no alheio. Ou então simplesmente fico deitado de costas só de ouvidos à música. As vezes é sono até ao amanhecer, mas muitas vezes retomo. Ao voltar ao quarto e ler novamente, estou renovado. Talvez faça outros exercícios mas são difíceis de fixar.
FM: Sendo perguntado recentemente sobre a pirataria, Paulo Coelho disse que todos escrevemos por um motivo. Por que você escreve?
EQ: Escrevo para alimentar os meus fantasmas. Para partilhar os meus silêncios, desassossegos e medos com alguém que não me conhece.
FM: O que te levou a enveredar pela carreira de jornalista?
EQ: Não sei. Não me lembro de um dia ter tido o interesse de ser jornalista. Não sei mesmo. Apenas olhei para mim e já não era eu, era uma coisa que já não conseguia deixar de ser. É importante dizer isto, os meus pais sonhavam com um outro Eduardo Quive. Talvez que fosse um Advogado, Juiz, ou seguidor de qualquer área das ciências naturais. Por ventura o meu sonho sempre foi ser professor e biólogo. Professor ainda serei, mas biólogo…!!???
FM: Qual deve ser a separação entre o escritor e sua obra?
EQ: Penso que devemos ter em mente que a obra só é nossa quando realmente está connosco. Antes de ser editada em livro e publicada. Depois disso, meu caro, o livro já era nosso. Tem outros donos. Esses desconhecidos que passam a ser os nossos santuários. Onde os mais verdadeiros pecados confessamos e as mais orgias realizamos. Em fim. Eu não consigo olhar para algo que escrevi e não achar que fosse necessário alterar alguma coisa. Tenho sempre a sensação de ter dito nada e que o essencial ainda estava comigo.
FM: O que acha que influencia a baixa taxa de leitura no mundo contemporâneo? O preço do livro? Famílias não leitoras? A estrutura da educação? Outros fatores?
EQ: Famílias não leitoras nem tanto. Eu venho duma família que se queremos seguir os traços não há leitores. O meu irmão, por exemplo, a quem devo as primeiras obras que li, começa a entrar nisso já no segundo ciclo de ensino secundário e também porque fazia letras, facilmente se influenciaria. O preço de livro pode contribuir para que haja pouca leitura, mas também não serve tanto, porque há meios alternativos. Se me perguntar qual é o livro mais carro que comprei, lhe direi com toda sinceridade que foi o de Calane da Silva “Xicandarinha na Lenha do Mundo”. Custou-me 425 meticais, o equivalente a uns 14 dólares se não estou em erro. O resto nem as obras de Mia Couto me foram tão caras. Tudo bem que isso pode ter seu contributo, mas em tanto. A escola sim é que é o motor para a formação duma sociedade leitora. É importante que o professor seja aquele indivíduo que convive com os livros e que tenha em si, a cultura de transmissão de valores, mais do que um simples transmissor de ideias formatadas dos sistemas de ensino. Ler não é fácil. Ler é uma cultura e por isso ser necessário ser cultivada. Mas tenho a dizer também que as sociedades são como uma obra de arte. Moldam-se. Se viver é conviver, então, quem está ao nosso lado é que nos dá a prova de que vivemos. Então essas convivências ditam, de algum modo, aquilo que sou. É importante que os valores se transmitam de pessoa a pessoa, do mais próximo ao mais distante. Daí jovens como nós tivemos a ideia de nos unir e servir como principal fundamento de que a leitura é importante para aquelas pessoas inseridas nas nossas comunidades. Mas acima de tudo, a escola que é o segundo lar, deve ocupar esse papel.
FM: Quais você acha que deviam ser os limites entre a experiência e a imaginação na escrita?
EQ: Esta pergunta transcende as minhas capacidades. Vou apenas fazer um comentário superficial. Uma coisa é clara em tão pouco nos serve a imaginação desacompanhada de experiência. A escrita é um exercício. Cada composição frásica deve ter um significado. Escrever é como edificar uma infra-estrutura. Temos que ter em mente várias questões: durabilidade, qualidade, beleza, estética, valor, imagem, criatividade etc. a diferença é que nós nunca sabemos quem nos lê e que nos lê, por sua vez, muito bem nos conhece. Mas penso que a imaginação deve ser matéria-prima, vem antes e a experiência, deve ser olhada como um truque de mestre. A munição que nos dá o último tiro. Faz de nós a diferença que queremos ser. A experiência exige de um escritor a lucidez e a imaginação é um verdadeiro delírio. Uma orgia de loucuras.
FM: Já há saraus poéticos pelo twitter, poesias postadas por SMS, leituras de contos no youtube, trailers de livros, adaptações para o cinema, balé contemporâneo com temas de poesias... Os limites que separam cada arte ou mídia estariam caindo aos poucos?
EQ: Penso que cada vez mais vai se desmistificando cada uma das áreas. Para a literatura isso é bom, porque cada vez mais ela ganha espaço no mundo sendo diversificadamente usada. Isso é que a torna alvo de vários admiradores e seguidores. Há quem só não goste de pegar no livro de 800 páginas e ler, mas se a mesma história é reduzida a uma hora de filme, a mesma pessoa pode gostar. Penso que na mesma a literatura vence, porque os mundos que ela tentou transmitir escrita, em imagens e personagens realmente vivas o homem pode ver. Afinal o para o grande público importa transmitir a mensagem e para o público mais apurado importa tudo numa obra, desde a estética, a técnica, as expressões, erros, entre outras coisas que já me referi. Isso é como os leitores: existem leitores que apenas se concentram na história contada pelo autor e há aqueles que vão para além. Decifram cada palavra existente na obra. Interpretam.
FM: Que tipo de abordagem um escritor experiente deveria fazer para alertar um jovem escritor de suas potencialidades e falhas na hora da escritura?
EQ: É complicado. Afinal, quando escrevemos a intenção não é formar escritores, penso eu. Parte-se do princípio que um escritor tem experiência de leituras. Eu costumo dizer que um bom jornalista tem que saber escrever um artigo de opinião. E um escritor, nesse sentido, tem que saber interpretar uma obra literária. Agora se precisamos de um escritor experiente lançar uma obra em que exponha alguns pontos específicos para escritores jovens, não sei e penso que seria muito difícil de o fazer. Mas de qualquer maneira, a cada obra que lemos temos alguma experiência a ganhar, penso eu.
FM: E, para concluir, algum recado aos escritores que entraram agora na vida literária?
EQ: Eu sou um escritor que entro agora na vida literária. E o que dizer a um outro? Se calhar que um escritor tem que ter vivido, só assim ele exerce a sua tarefa de criar mundos para o mundo. E dizer que não há escola para se ser escritor, a não ser a vida vivida por nós e por outros, essa última, tida em ouvir e compreender os outros e de leitura. Muita leitura. Nunca lemos o suficiente.
POEMAS DE EDUARDO QUIVE
Quando eu morrer…
Levai a minha amada para os homens,
Os meus filhos que fiquem com o além.
Levai os meus escritos para o povo,
O que sobrar que seja para quem quiser.
Na minha morte…
Na minha transferência vital,
Na minha derrota sob a vida,
Nos meus passos pelo horizonte,
Na tragédia contra a vida…
Mandam-me para avenida,
Chamem a todos.
Partilhem o meu corpo com os ladrões do Lhanguene,
Entreguem-me aos assassinos do Cardoso,
Partilhem os meus escombros com o além que levou Craveirinha,
Com a desgraça que engoliu as palavras do Amin,
O resto fica com o inferno.
Na minha morte,
Poupem-me das homilias do padre João,
Poupem-me de lágrimas que a mim não estarão a chorar,
Não quero honras de ninguém,
Nem nada…
Quero apenas morrer
Metam-me com urgência na terra faminta que me vai comer com gosto.
Entreguem-me de imediato a justiça divina.
Bem longe de mim
Distante do colo da minha mãe,
Abandonado pela poesia
E engolido pelo silêncio profundo.
O Próximo
Aos Chichavas
Um bando de dor se excitou,
Lágrimas em versão dos hinos celestes,
Buscavam o momento do adeus último.
Diante de mim, estava a nova habitante do além
Do poente
Do fim
Da noite que não amanhece.
De doloroso
Nascia no escancaro,
A tumba
O túnel do abrigo na morte.
Mais uma vida se rendera aos deuses assassinos
Desta vez
Foi em Junho.
Aos meus olhos
A pirâmide esquivou-se do mortífero Setembro…
Quem sobrou….
O que ficou?
… A maldita que engolirá a minha mãe?
A peste que cobiça o meu pai?
O próximo é desconhecido
Mas existe
E a peste o levará para onde quiser
OBSERVAÇÃO: Lhanguene, (traduzido literalmente para o português, Lhanguene quer dizer no caniço. Esta palavra vem do termo Lhanga que significa “Caniço”) é nome de um cemitério de Maputo e que a dado momento, era alvo de roubo de caixões e artigos com os quais defuntos repousam. OS VERSOS: “a maldita que engolirá a minha mãe?” e “A peste que cobiça o meu pai?” são verdadeiros desabafos. Na família da minha mãe, desde que o seu pai morreu em Setembro de 2002 todo o ano no mês de Setembro mais alguém da família morre. Na maioria são irmãos da minha mãe. Aqui digo claramente que provavelmente a próxima morte pode escalar a minha mãe.
Mas também, na família do meu pai, todos os homens morreram e apenas meu pai ainda está em vida. Mais um medo: será o meu pai o próximo? Paro por aqui, penso que aqui expliquei melhor o teor dessa obra.
Fonte:
http://ocalangoabstrato.blogspot.com.br/2012/01/felix-maranganha-entrevista-eduardo.html