#Parem de nos Matar é Letramento Racial em crônicas
#Parem de nos matar, de Cidinha da Silva, livro composto de crônicas reunidas, publicadas antes em sites e blogues na internet, chama a atenção por vários aspectos, dentre eles a alta qualidade editorial (papel, fontes, coloridos); e o esmero na leve e cuidadosa linguagem da escrita e na promoção da humanidade das pessoas negras, apesar de tratar de temas áridos como a morte, morte simbólica, morte cultural, massacres, extermínios, genocídio do povo negro, homofobia, apagamentos e invisibilizações de negros e negras, crimes bárbaros, racismo institucional, racismo velado, intolerância religiosa, violência policial, violência de gênero, negação da condição humana para negros e negras, etc. Para além do registro humanizado, é ferramenta de insubmissão e incentiva a autoestima, memórias, estética, beleza, história, humanidades, religiosidades, cultura.
O título, na primeira pessoa do plural, já nos inclui e chama para o coletivo (ninguém nasce só, vive só, morre só): o grito uníssono, o afetivo, o convívio comunitário, familiar, o desespero dos que morrem e dos que podem estar na fila... Evoca um chamado por socorro, para que cada um/a de nós atente para o perigo real, iminente, que acomete negros e negras, todos os dias, principalmente jovens das periferias de todo o Brasil. Denuncia chacinas orquestradas pelo racismo institucionalizado, sofisticado, engendrado e enraizado nesse país desde sua fundação, em que negros e negras são subjugados, subalternizados e mortos; o mesmo racismo mantido até hoje, disfarçado, mascarado de democracia racial – propalado, inclusive, por redes nacionais de mídia, como a Rede Globo -, que exclui e elimina, nega direitos, encarcera e aniquila; o mesmo racismo que sonega informações, direitos inalienáveis como o direito à vida; o mesmo racismo exercido pelo Estado, através do seu braço armado, a Polícia, que acusa, julga e executa com “balas perdidas”, sob a justificativa do “Auto de Resistência”, sem direito a apelação, muitas vezes sem direito a um funeral digno; o mesmíssimo racismo genocida do povo negro, cujos corpos são numerados para estatística e dos quais se retira a alma, são enterrados como indigentes, em valas comuns, ou desovados em pontos bem conhecidos de todos; o mesmo racismo midiático que sequer cita nome e sobrenome dos assassinados e que serve carne negra em banquetes macabros na hora do almoço, em que pseudojornalistas justiceiros são coniventes com o linchamento de corpos e subjetividades e com essa barbárie, equivalente à queda de um grande avião por dia.
#Parem de nos matar sangra em cada parágrafo, rememora o massacre de Ruanda (1994), o genocídio e crimes sexuais praticados pelo Boko Haram, na Nigéria (2014/15), que causam menos comoção que um atentado a um jornal satírico em Paris; o massacre dos treze rapazes do Cabula, em Salvador, em 2015; #Parem de nos matar faz a denúncia da morte física, mas também da espiritual e das subjetividades, da morte em vida, dos choros engolidos, do medo de depor e ser o/a próximo/a da lista; escancara os crimes de ódio, que destroem e invadem casebres, ofendem em redes sociais ou em bancadas de jornais em rede nacional – caso Maju: Maria Júlia Coutinho -, humilham em estádio de futebol – Mário Lúcio Duarte Costa, o goleiro Aranha. O livro mapeia, aponta, geográfica e afetivamente, pranteia junto às vítimas, vela os velórios com nomes e sobrenomes; demonstra a gentrificação - processo de expulsão das populações locais para dar lugar a condomínios e outros empreendimentos imobiliários -, o qual apaga memórias geográficas, relações afetivas e culturais, desumaniza e coisifica ancestralidades, histórias de vida, relações familiares e sociais.
Mas o livro é também a resistência, trincheira e porta-voz de mães/pais, filhos/as, irmãos/ãs, amigos/as desses jovens mortos a cada dia. Nas crônicas, linhas e entrelinhas, a dignidade do ser humano é resgatada, não cai no esquecimento. As mortes não são contadas como meros números, muito menos comparadas às partidas de futebol, nem coisificadas. A beleza do livro é demostrar a luta contra toda sorte de preconceitos: raciais, de classe, de gênero, religioso. Cita personalidades que também sofrem preconceitos e lutam contra o racismo: Thaís Araújo, Lázaro Ramos, Lívia Natália, Jean Wyllys, Liniker, Michele e Barack Obama, Heraldo Pereira, Luiza Bairros (Luiza-Mãe, Luiza-Mentora, Luiza-Ministra), Zezé Mota, Djavan, Vilma Reis, Mariene de Castro, dentre outras. Registra a garra das Marchas do Empoderamento Crespo, das lacradoras e tombadoras, do Letramento Racial citado pelo Padre Mauro Luiz da Silva, a valorização da estética negra, o resgate da autoestima. Traz o relato de Sueli Carneiro, vislumbrando em Cidinha da Silva a continuidade da batalha pelos direitos humanos, o que se confirma pela trajetória da escritora, que recebe outros bastões de movimentos como o Reaja ou será morto, reaja ou será morta! Certamente outros/as levarão adiante a missão de denunciar, abrir mentes e olhos, defender a vida de Amarildos e Cláudias (Amarildo Dias de Souza, pedreiro, da Favela da Rocinha, “desaparecido” por policiais no Rio, em 2013; Cláudia Silva Ferreira, morta e arrastada por uma viatura policial, também no Rio, em 2014). A obra nos conclama para a defesa não só da vida, mas das subjetividades, afetividades, direito de ter filhos (vê-los crescer, estudar, trabalhar), direito de ir e vir, de trabalhar, entrar para a universidade e se manter nela, se formar e intervir nas políticas públicas; no direito ao lazer, ao lar, saúde, segurança pública, religiosidade, direito aos Direitos Humanos, cidadania plena!
Esta antologia, com plena certeza, é alicerce para fortalecer o combate ao racismo, à desigualdade, à intolerância, à violência direcionada a negros e negras, que forma mais da metade da população; é um bastão que pode ser compartilhado, carregado junto em coletividade, para derrubar os muros do desrespeito e do apartheid sociocultural, que criminaliza os rolezinhos de jovens periféricos em shoppings centers ou qualquer outro território além-fronteiras da quebrada. Assinam com a autora, todos/as aqueles/as cujas vidas e sonhos foram ceifados; os que tiveram a vida interrompida, apenas por serem negros/as; assinam, também, quem luta junto, contra o racismo. O livro faz registro solene e respeitoso, em literatura-denúncia, para que não se esqueçam desses mártires modernos nem se apague a memória dos mártires dos novos Navios Negreiros. E que nunca mais se ouça falar em arma plantada, em resistência policial inventada, muito menos em últimos suspiros, em vozes caladas pelo racismo. É necessário que façamos um exame de consciência para não incentivar o preconceito por falta de informação e falta de amor. #Parem de nos matar é um livro-bastão que precisamos ter em mãos, praticar o respeito durante nossa existência e passar adiante, para que a luta seja vitoriosa.
Cidinha da Silva, através da literatura, nos fortalece e estimula a continuar o ativismo presencial, com redes de amigos, defensores/as públicos/as, marchas, caminhadas, denúncias formais e acompanhamento dos andamentos processuais, engajamento de verdade, para além do ativismo do cyber web. Denunciemos os criminosos, façamos justiça a cada gota de sangue, a cada agressão. E matemos o racismo!
Valdeck Almeida de Jesus é jornalista, escritor, ativista cultural, poeta e blogueiro.