Poesia e dureza da vida faz sucesso em Goiânia/GO
Ando lendo o teu livro. E junto com ele tenho relido 'O Universo elegante'. O teu é um documento histórico do mais radical valor: um close up estarrecedor, de tão demasiado lúcido, da face da injustiça. "Memorial do Inferno" só não desclassifica os livros de história porque aquilo que o humano ignora ainda é o utensílio que dá permanência (dinâmica?) ao que chama-se de civilização - é como se de súbito, quando se lê que algum determinado homem é reconhecido pela História como um Grande conquistador, a imagem que se forma já não demonstra a idéia de antes, mas sim a de um homem, e seu exército, que estupra, desqualifica, mata...
O tom em que vc escreve é de um (quase) jornalístico que demanda desconforto - o leitor está livre para arrepiar sensações; e aí reside o drible, já que a liberdade proposta é o atestado de uma mecânica que só não nos fixa em xeque-mate porque o Universo cabe dentro de um lambari. Tão escancaradamente lúcido que por vezes a ironia é ferrenha. "Aliás, havia casas somente de um lado da rua, do outro era mato fechado, onde todos os moradores jogavam lixo e onde as crianças brincavam de esconde-esconde". Há instantes em que a gargalhada rompe-se brusca para logo em seguida, antes mesmo que ela se complete como tal, a garganta destravar olhos úmidos. "Quanto à previsão de fim do mundo, minha mãe acreditava piamente que o mundo se acabaria no ano 2000. Quando chegou o reveillon desse ano, foi quase uma decepção para ela, mas depois ela ficou alegre, pois viveria mais tempo aqui na Terra. Mas ela tinha uma previsão para a sua própria morte, que seria durante o ano de 2000, como realmente aconteceu, em junho daquele ano"..É como se vc propusesse uma pintura abstrata de uma cena absolutamente decifrável, onde o uivo arcaico e caótico descrevesse (como o instinto de sobrevivência que perdura a vida) uma ordem incomoda de tão indecifrável - exatamente por ter sido vc a testemunha ocular do crime. "A maior parte do tempo minha mãe ficava sem os movimentos dos membros inferiores. Ficava praticamente aleijada, se arrastando pelo chão, sem sensibilidade nas pernas". Suas descrições beiram o terror fantástico. "Atrás da casa tinha um beco, onde eram guardados ossos. À noite os cachorros vinham roer os ossos e faziam uma algazarra que me amedrontava"...
Ando lendo o Memorial com o melindro de quem ainda não viu um corpo em estado de putrefação, mas insiste em olhar o inferno de frente. Não por outro motivo, Valdeck, tenho-o intercalado com 'O Universo elegante', Já que com o Inferno precipito-me inevitavelmente a uma angustia que somente a poesia matemática pode dissipar sem que eu me sinta ludibriado; é como se de algum modo uma solução fosse dada, nem alegre nem triste, apenas um resultado - além bem e mal. Uma angustia que só o sentimento de impotência pode e sabe, com requintes de precisão, manufaturar. Até mesmo a mais pulsante das poesias parece tornar-se medonha... diante tão absoluto equívoco - por isto foi-me, e continua sendo, tão difícil começar a escrever sobre o teu livro desde o dia em que o recebi. Ainda estou lendo. E estarei em contato contigo à medida que sua vida for se tornando minha - me perdoe a pretensão. Numa vida descrita como a tua, o único modo de ter poesia é como Clarice Lispector diz: "Acreditar chorando". O presente é de tal modo estupefato e cortante que o socorro só pode perder a tragédia diante do respaldo, do calor humano. Um incômodo que ainda assim perdura - tal e qual o buraco deixado por um prego em uma superfície; tal e qual o olhar parado de alguém, antes da América ter sido descoberta pelo homem 'civilizado', com os pés nus fincados na areia, sendo fisgado pela contorção sonora do outro lado do Oceano. Uma linguagem que já poderia ser desconhecida caso o vazio existisse...
Um grande beijo. Als.
Goiânia/GO
PS: ALS é pintor, escultor e crítico literário e de arte.
Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 05/10/2007
Alterado em 16/10/2007