Resistência do povo negro no Calabar
“Somos belos. Olhe como somos belos”, disse a professora Jumara Novaes Sotto Maior, 40 anos, se referindo aos participantes e à platéia da mesa redonda promovida pelo grupo Quilombo em Ação, na manhã de 17 de novembro de 2007, na Biblioteca Comunitária do Calabar, em Salvador. Antônio Sampaio, Tonico, 50 anos, ex-presidente da Associação de Moradores do bairro, também participou do evento cujo tema principal foi “Consciência e Resistência: aspectos violentos no processo histórico do negro no Calabar”, como parte das discussões que antecedem o Dia Nacional da Consciência Negra.
Sampaio fez um resumo da história da luta da comunidade. Segundo ele, as notícias que a mídia publicava sobre o Calabar em 1977 eram muito negativas. “Os jornais diziam que o bairro era um antro de marginais e de ladrões”, afirma. “E aquilo mexia muito com a auto-estima minha e de meus amigos, moradores do local”, completa. “A gente se reunia nos bares para debater o assunto e chegamos à conclusão que deveríamos fazer algo para mudar a situação”, conclui.
“Formamos um grupo de jovens que contestava a imagem negativa que a mídia publicava”, relembra. Esse grupo se reunia inicialmente na igreja, “mas não era para rezar. Nós lutávamos por melhores condições de vida”. “O acolhimento que o padre nos deu serviu para nos proteger da repressão militar, que não permitia discussões políticas”.
O líder comunitário viu o bairro crescer e os problemas se multiplicarem. “Não havia água encanada, conta”. “Existia um chafariz que foi construído por nós em 1958”, fala orgulhoso”. “Vendemos muitos jornais A TARDE para arrecadar dinheiro para a obra”, lembra.
Também não havia luz elétrica, rede de esgoto, posto médico, módulo policial nem asfaltamento das ruas. “Quando um morador adoecia, era necessário ser carregado até a avenida Centenário, onde passava carro”, diz. Toda a infra-estrutura do bairro foi construída através da mobilização dos habitantes do local.
Consolidação do bairro
A especulação imobiliária quase afetou o bairro. Antônio lembra que onde hoje se localizam o Shopping Barra, o Hotel Othon, o Instituto Pedro Melo e o Jardim Apipema eram bairros populares que foram desapropriados pelo governo. A luta da associação de moradores do Calabar se fortaleceu quando a população se juntou para defender seu território. O resultado foi um decreto municipal que proibiu a construção de edifícios no local, o que garantiu a permanência do bairro.
Através da mobilização de amigos e parentes o grupo de jovens conseguiu a adesão e confiança da comunidade. O resultado foi a instalação de um telefone público comunitário, energia elétrica, água encanada, esgotamento sanitário, escola e creche comunitárias. Antônio faz questão de frisar que no bairro não existe nenhuma escola pública e a construção da escola e da creche foi feita em regime de mutirão pelos moradores do Calabar.
A Escola Aberta trabalha com os métodos de Paulo Freire, ensina a partir da realidade de vida do aluno e tem apoio pedagógico de universidades da capital. O ensino abrange dois aspectos importantes: a formação acadêmica e a humana. Ali, segundo Sampaio, a questão da cidadania plena é debatida e ensinada. Os alunos aprendem a pensar sua história, debatê-la, reescrevê-la e agir como agentes multiplicadores na sociedade. “Várias pessoas que nasceram e foram educadas aqui dirigem escolas, sindicatos e outras instituições”, assegura.
A professora Cristiane Lima, 41 anos, nascida e criada no Calabar acredita que “a mobilização da comunidade para o conhecimento de sua própria história coloca nas mãos dos moradores os destinos do bairro”, e “faz de cada um agente do próprio destino”. “Acho positivo que todos participem”, assegura.
Na opinião da professora Jumara Novaes há duas frentes que precisam ser trabalhadas: “radicalização na luta pelo direito à educação em quantidade e qualidade”, e “direito à auto-formação”, entendida esta como o direito de a própria comunidade tomar a frente nas discussões sobre as políticas universalistas. “A valorização da cultura local e a correção das desigualdades historicamente construídas” devem estar sempre na pauta do dia segundo Novaes.
Moradora da Cidade Baixa, negra e militante em prol de uma política educacional abrangente e inclusiva, a professora Jumara é favorável às cotas para acesso de negros à universidade. Mas acredita que “este instrumento deve ser momentâneo”. “Se as cotas se perpetuarem significa que há algo errado, que a ainda há desigualdades”, explica. “Deve haver investimento na qualidade da escola básica e fundamental, como forma de eliminar as diferenças na formação dos alunos das redes pública e privada”, conclui.
“A sociedade precisa se acostumar com a idéia de ver um professor negro, um advogado negro, um juiz negro”. “O acesso a estes espaços, somente a educação pode fornecer”, afirma Novaes. Concordando com ela, a estudante Luana Dandara, 20 anos, moradora do bairro da Liberdade, disse que “a educação das crianças jovens, bem como a reeducação dos adultos, pode não trazer resultados imediatos”, “mas formará pessoas que servirão de modelo”, disse.
Foto: Gilson e a professora Jumara Novaes