Quando nasci na cidade
Nem tudo era magia
Tinha fome e agonia
E muita necessidade
Era pouco o dinheiro
pouca festa de vaqueiro
E das poucas alegrias
Uma dela era sair
Era como eu fugir
Pra fazer estripulia
pra comprar sem ter dinheiro
e comer tudo ligeiro.
Minha festa era na feira
Que mamãe a visitava
Ela somente olhava
Era como uma freira
Em vida de monastério
Pra viver em um mistério
Eu alegre acompanhava
Com a maior alegria
para ver a cantoria
que ali ela cantava
pedia a muié e home
pra matar a nossa fome
O povo gritava forte
“Traz dinheiro e a vazia”
Chega logo minha fia
Esse era o grande mote
Moça bonita não paga
Mas também não leva nada
Era tudo encantamento
que a fome eu esquecia
e a barriga vazia
já não tinha mais lamento
me ligava na pegada
de palavra encantada
Em cada banca da feira
Minha mãe ia parando
E magia espalhando
De segunda a sexta-feira
E cantava sem parar
Pra nossa fome matar
De tudo um pouco pedia
e o povo ia doando
a sacola ia inchando
e eu nada entendia
eu brincava de esmolé
nas feiras de Jequié
Eu brincava de pedinte
Porque nada entendia
E ali me entretia
no meio daquele acinte
passando dificuldade
na feirinha da cidade
Jovenzinho fui a escola
outros mundo descobri
e os zoio eu abri
entendi que era esmola
e aquela situação
embrulhou meu coração
No meio daquelas letras
O cordel eu descobri
E então eu entendi
Que a vida é uma treta
E pra gente se safar
O melhor é estudar
Entendi que a cantoria
Mantinha nosso existir
Por isso sobrevivi
Da fome que me comia
Mas o estudo ia me dar
Mais força pra lutar
Minha mãe analfabeta
Sabia muito da vida
Fazendo da nossa lida
Todo dia uma festa
Feira era nossa escola
E o livro uma sacola
Vivia cantando versos
Para curar as feridas
Trazendo pra nossa lida
Os encantos do universo
Nos guiando para o bem
Neste mundo e no além
Nossa maior alegria
Era ter nossa comida
Pra alegrar a nossa vida
E nossa filosofia
E fazer a nossa dança
E encher a nossa pança
Na feira tinha de sobra
De afeto a carne ardida
Que servia de comida
E seguir a nossa obra
Construir nosso labor
Com carinho e amor
Na juventude passei
Trabalhar de vendedor
Louça, linha e prendedor
Foi aí que me virei
Trabalhando de feirante
Mudou tudo em um instante
Vendia de tudo um pouco
de panela a muamba
Em cima de uma caçamba
Parecia até um louco
No frio e no calor
Com labuta e amor
O prazer de ter comida
E o aluguel pagar
Me deixava a cantar
A agradecer à vida
Pela chama de alegria
Que o coração enchia
Eu vendia ali calçola,
Frigideira e talher
Roupa pa home e mulé
E a noite na escola
Me matava de estudar
Para a vida melhorar
Quando acabava a feira
Eu fazia a promoção
De panela e de calção
Era a xepa batedeira
Tudo a preço de banana
Ou de rolete de cana
Aqui eu tenho de tudo
É hora de promoção
De galinha a sabão
Tenho peixe do graúdo
Cinto, cueca e fivela
Para ele e para ela
Os cliente ali chegava
Começava a pechinchar
Para o preço eu abaixar
Muita coisa eles comprava
A dinheiro ou no fiado
No cadernin anotado
Quando tudo se acabava
Era pura alegria
Com cachaça e cantoria
A vida recomeçava
Comprar mais para vender
E para empreender
Era hora do escape
Outra viagem fazer
Para na vida vencer
Na caçamba de picape
Enfrentar nova friagem
Voltar vivo da viagem
Estender a lona preta
Para começar vender
E o freguês convencer
Eta por cima de eta
Era duro o dia a dia
Pra depois ter alegria
O corre-corre era duro
Pra depois ter alegria
E vencer na correria
De um jovem ainda puro
Com muita honestidade
Para viver na cidade
A mãe já não precisava
Levantar a sua mão
Pra pedir humilhação
Pois o filho trabalhava
Em casa tinha comida
Para sustentar a vida
Chegava tarde na escola
Se matando de estudar
Pra de manhã trabalhar
Para fugir da esmola
Nova lida peças praças
Para não comer de graça
Uma mãe e oito irmão
Mas a luta era uma só
E lutar sem muita dó
Pra alegrar o coração
Para ter a liberdade
De viver na honestidade
A feira me ensinou
A conviver e sonhar
Dormir pouco e levantar
E nunca me abalou
Acordar pra trabalhar
E a tudo conquistar
Hoje eu tenho saudade
E também a nostalgia
Do sorriso e alegria
Da minha tenra idade
Do vuco vuco da feira
Que me deu a estribeira
Por isso vivo vendendo
Mas não é mercadoria
Hoje vendo poesia
E o coração enchendo
De fé e muita magia
Nessa minha correria
Visito feira de livros
E também as bienais
Em todas as capitais
Pois ali é que me livro
De tudo que é tristeza
E melhoro a destreza
Nessas feiras tem poetas
Escritores e cantador
Onde vive o amor
Onde vive os atletas
Das palavra encantada
Das palavra abençoada
Feira é ponto de encontro
E também encruzilhada
De palavra espalhada
Vem gente de todo canto
Tem história misturada
De uma gente abençoada
Autor: Valdeck Almeida de Jesus é escritor e jornalista. Ativista cultural e Embaixador do Parlamento Internacional dos Escritores da Colômbia, membro fundador da União Baiana de Escritores - UBESC e do Fala Escritor (2009). Participa do grupo de pesquisa Rede ao Redor, do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos - IHAC/UFBA.
Site: www.galinhapulando.com