Um mapa no suave coração da poesia
“A verdade é que já cometi mais de um crime de lesa-poesia”
José Paulo Paes
A prosa se projeta sempre para o além. Sua meta é a utopia. Artistas criadores comungam do sentimento de inadequação e insaciedade. Não lhes basta a vida como ela se apresenta. É preciso remodelá-la. Criar um novo mundo. Às vezes, puramente abstrato e distante da realidade em que vivemos. Outras, selecionando e acusando o que não mais se deseja. E mesmo quando a linguagem utiliza significados já consagrados pelo uso, seu parâmetro continuará a ser o utópico. Já a poesia é a chama que produz novos sentidos em si e renova o aspecto lúdico e erótico da língua. Seu manancial são os sentidos do agora, rearranjados em busca de inolvidáveis prazeres, choques, violências e geografias. Um verso é sempre um sentido outro. Obscuro mesmo na clareza. Ou ainda “o sinal de um inexistente farol em plena bruma”.
O poeta, no dizer de Alfredo Bosi, “é o doador de sentido.”
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Estabelecidas as diferenças de modo sucinto mas absolutamente necessário, reconheçamos a dificuldade que cerca o escritor de ficção – ou o que se convencionou chamar de ficção.
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Tanto a prosa quanto a poesia não são propriedades exclusivas de ninguém. Há uma grande variedade de fazeres que se aproximam e repelem, porém jamais se anulam. E se há algo de maravilhosamente fantástico na vida é saber que estamos em perene estado de mudança. A contemporaneidade e todos os seus pós e suplementos e diversidades e multiplicidades apontam para uma tal complexidade que nossos bisavós sequer sonhavam. E tudo isso é muito positivo. Contudo, assusta. Mas devemos ser fortes e corajosos para pormos nossos valores em cheque e permitir que mudemos também. Não é apenas questão de gosto. Talvez, políticas. E melhor assumirmos nossas políticas, sejam elas micro, médias ou macro, antes que o rolo compressor da política alheia nos amasse. Afinal, estamos no mundo. E por opção.
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Aceitar a mudança não se constitui num imobilismo ou ceticismo. Essas atitudes estão mais ligadas ao medo da. Tampouco – fiquem alertas! – traduz-se em resignação. Aceitar a mudança é mudar junto por coragem de se reavaliar a cada dia, escolhendo e negociando nossas precariedades e potencialidades. Ou mudar o outro. O que não se pode é fugir do jogo, acatar a morte e a doença como estados únicos da vida.
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Estou com quatro livros de poesia espalhados em forma de leque sobre a mesa: Hertache, de
Valdeck A. de Jesus; Concerto Lírico a quinze vozes: uma coletânea de novos poetas da Bahia; A terceira romaria, de José Inácio Vieira; e, por fim, Elegia de agosto, de Ruy Espinheira Filho. Têm eles algo em comum para que eu os una nessas elucubrações corriqueiras? Vamos ver.
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Por vezes, a poesia parece estar à margem da escrita. Abre-se um mapa de viagem durante o trajeto e descobre-se que algumas das cidades por onde se passou não constam no papel, faltam pontos e linhas. Procura-se um guia como alternativa, suprimim-se ou alastram-se informações, todas elas arbitrárias. A analogia fala de exclusão, mas pode bem marcar o lugar de seu oposto, a inclusão do que não nos interessa. O certo é que determinados poetas e poesias estão no mapa e outros não.
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Todos esses autores vivem fora das malhas do poder. Ou de um poder: o dos detentores dos meios de comunicação e econômicos que mobilizam a recepção da cultura na maior parte do país: o tenebroso eixo Rio-São Paulo.
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Valdeck A. de Jesus publicou seu primeiro livro em solo estrangeiro. Não em Portugal, Moçambique ou Angola. Preferiu publicar nos EUA. Invasão bárbara? Ou simplesmente um grito anônimo de socorro aos ouvidos moucos do Império? Acontece que se a poesia é marginal em relação ao mercado editorial brasileiro, se os autores nordestinos são marginais em relação ao mercado de poesia dos grupos hegemônicos, um autor gay que faça bandeira da sua condição homossexual é triplamente marginalizado. Hertache é um corpo de poemas marcado pelas flechas de São Sebastião. Dor, angústia e prazer. Valdeck pratica uma poesia altamente confessional, situando seu espaço e sua rebeldia. O problema do livro é que o teor do conteúdo não é suficiente para garantir um vigor formal.
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O momento: um gay brasileiro saindo do armário. Explica-se então: sua casa não é essa e nem é seu esse olhar. “Love is not love/ Peace is not peace/ War is not war/ Passion is not passion/ Everything is not everything/ Nothing is nothing.” (p. 11) Anseia um amor que não vem e se derrama no seu interior. Mas nem todos gostamos de suas intimidades. “Only the mad people can love/ only the mad people are happy/ only, just only, the mad one/ can ‘slip up.’” (p. 53).
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Sua visão de mundo é pessimista, dolorosa. Ao falar dos seus sentimentos, suas aventuras amorosas, faz uso de uma linguagem clara, sem surpresas, com poucos recursos visuais, hipnotizado que está pela imagem no lago, pelo silêncio das palavras, apenas unidas pela corrente semântica e ignorando o sabor da música. Tal crueza pode ser necessária para um tema árido como esse, o descobrir-se desejante e desviante, porém, algo nos indica que alguns efeitos rítmicos se perderam no processo de transposição para o inglês.
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Resta destacar a coragem de certo tom sacrílego. “This phoney god of the people,/ who kills us with desire,/ is a shameless cuckold,/ Bum, and thief;/ He’s on all sides,/ disrpting the patience,/ but was never discovered/ by any of the sciences. (...)” (p. 34).
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Nos quatro livros percebe-se o predomínio do lirismo, para o bem e para o mal.
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Concerto Lírico a quinze vozes: Uma coletânea de novos poetas da Bahia. José Inácio V. de Melo organizou uma antologia corajosa e que vem coroar seu trabalho de agitador cultural e difusor do labor poético. Estamos nos trópicos: “O Sol sabe de tudo./ Mais do que eu./ Mais do que tu./ Mais do que esta chuva/ Que desaba fachadas.” (p. 35) Versos apolíneos de Ângela Vilma que abrem a publicação e anunciam o caráter de artífice do coral capaz de entonar diversas melodias, como a de Cristina Leilane: “Em outros tempos glaciais, outras orquestras possíveis” (p. 51).
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Os destaques, além das duas poetisas citadas, são o próprio José Inácio V. de Melo, Kátia Borges, Marcus Vinícius Rodrigues e Sandro Ornellas, que avançam o sinal e se arriscam num trânsito intenso entre a emoção deslocada no espaço e o apuro na escolha de um vocabulário rico e às vezes saborosamente coloquial; quero dizer: têm estilo.
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Algumas pedras-de-toque: José Inácio: “Fogueira encarnada,/ dou testemunho dos meus dias:/ cicatrizes no lombo,/ na cara e pelos braços” (p. 119); Kátia: “Não quero o pássaro que tenho nas mãos./ Eu preciso é dessa ave que voa.” (p. 132); Marcus: “Ontem eu vi um crime de morte,/ desses que ganham louvores na TV.// O morto caiu vazio no chão,/ o outro fugiu com o dinheiro de comer.// Não dormi, não comi a noite inteira./ Economizei em mim essas vidas perdidas.// A do morto, que teve em medida,/ a do outro que ainda a está por ter.” (p. 152); e Sandro: “MEU AMOR SE ASSOMBRA COM OS ESTILHAÇOS DA ALVORADA/ desejo e não desejo teu vocabulário de simetrias/ pois tu – cidade – não és/ real por fora/ mas apenas em mapas de utopia/ sintaxe material das minhas contradi©coes mais necessárias” (p. 196).
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Narlan Matos e Vladimir Queiroz apresentam mais pontos altos do que baixos. Narlan: “Por baixo da porta chegam mais contas que soluções/ O preço do pão é o preço da vida/ E não há nenhum milagre marcado para segunda-feira” (p. 181). Vladimir: “Usa as tuas pernas tortas/ ousa,/ entrega, larga o leme/ segue o astrolábio/ navega na noite nua/ lua cheia, bússola lusa/ beija a musa fremente.” (p. 206).
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Os outros, me perdoem a franqueza, permanecem num lirismo fácil, bucólico e de pouca eletricidade. Resgates de infâncias. Há quem goste e eu os respeito.
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José Inácio Vieira de Melo, não contente com a antologia, tascou A Terceira Romaria na rua. Traz poemas inéditos misturados a uma seleção dos dois livros anteriores, Códigos do Silêncio (2000) e Jardim dos Mandacarus (2202). O grande mérito desse poeta está no molde de um verso fora dos sombrios becos urbanos, abrindo um diálogo com o cordel e traduzindo com alguma verdade o ambiente sertanejo, sua música e aura mística. Mas não se reduz a isso, utiliza-se também da metalinguagem e prova que soube extrair o que havia de melhor na sua produção anterior.
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Por último, o mais famoso dos poetas baianos em atividade: Ruy Espinheira Filho e seu belíssimo Elegia de Agosto e outros poemas. Ele “abre janela e porta/ como se abrisse a manhã” (p. 50), convidando-nos para experimentar toda a excelência do domínio formal, os versos duma clareza ofuscante, uma música doce e encantadora aos ouvidos: “Não importa. Não importa a face/ doce; e, nos semicerrados// olhos, a canção do sonho./ Importa que houve um sonho/ e o esplendor dessa face/ — antes que o tempo passasse.” (p. 54). Chega a constranger a naturalidade como constrói seus versos e imagens. Ruy conseguiu absorver o que há de mais rico em nossa tradição poética, a elegância e o difícil gosto pelo simples que moveu um Bandeira, um Quintana e certo Drummond. Sua invenção e força verbal são de tal dimensão que podemos abrir o livro ao acaso e praticar bibliomancias: “Um poeta desperta em mim/ e vem/ com jogos de xadrez e túmulos/ perfumados de vinhos. E em seguida/ um outro, caminhando/ por uma ponte/ em companhia da própria sombra magra/ e com medo/ do Destino.” (p. 67). Em sua maturidade, o poeta ainda nos dá uma lição dos sentidos. Não é preciso contorcionismos, assomos de fúria: “Ele a respira suavemente/ na alma.// O som de seu nome se dissolveu, há muito,// numa brisa// Ele a sonha como um sentimento/ de nuvem.” (p. 240). Quase nos faz dançar sua elegia, sua canção para os mortos. Agosto, mês de inverno, ventos e maus agouros: “Então eu subia a escada/ sob o letreiro do snooker/ e jogava sem consolo/ e sem consolo comia um pastel/ nevado de açúcar.” (p. 87). Com açúcar e com afeto, indo ao encontro a si mesmo e se analisando, a memória, a emoção e o mistério de amar o outro, o desconhecido. Nessa seleção, Ruy Espinheira estabelece ainda uma fraternidade sonhada, delicada, distante do individualismo e aridez de um mundo economicamente globalizado.
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Existem poetas e poetas. Alguns, dentro e fora do mapa, cometem traições, crimes de lesa-poesia. Porém, se o amor não for pouco, novas tentativas virão.
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HERTACHE POEMS . Valdeck A. de Jesus. (New york: IUNIVERSE, 2004). Pedidos para
valdeck@hotmail.com
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CONCEDRTO LÍRICO A QUINZE VOZES: Uma coletânea de novos poetas da Bahia. Org. José Inácio Vieira de Melo. (Salvador: Aboio Livre, 2004)
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A TERCEIRA ROMARIA. José Inácio Vieira de Melo. (Salvador: Aboio Livre, 2005)
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ELEGIA DE AGOSTO e outros poemas. Ruy Espinheira Filho. (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005).
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PAES, José Paulo. “Um poeta como outro qualquer”. Ateres e ofícios da poesia. Organização de Augusto Massi Porto Alegre: Arte e Ofícios, 1991. p. 182.
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MÓISES, Massaud. A criação Literária: poesia. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1989. p. 87.
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BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1990. p. 141.
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