Conversando com a consciência:
A questão do diálogo em Todos os nomes de José Saramago
Faz-se necessário permear rapidamente o contexto social e literário em que a obra aqui analisada foi concebida, assim como as características do autor, para que possamos ter uma melhor compreensão da história do citado livro e do tema que este texto se dispõe a discutir.
Primeiramente, lembremos que o contexto literário da criação do livro é o pós-modernismo e observemos as características desse período nas obras de Saramago; como, por exempl,o a liberdade lingüística; pois o autor escreve de forma inusitada, utilizando a vírgula para substituir quase todos os sinais de pontuação; como o ponto continuativo e o travessão, por exemplo. Podemos observar isso em Memorial do convento, em Ensaio sobre a cegueira, em Todos os nomes e outros livros.
Outra característica pós-moderna é a confusão entre realidade e ficção; seja na mistura dos diálogos fictícios que se dão dentro da cabeça do Sr. José com os que ele realmente executa com as outras personagens; seja na inspiração da obra, proveniente de uma visita de Saramago ao Brasil, como ele mesmo afirmou em uma entrevista dada à revista Playboy, na ocasião em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998: “... Nasceu quando fui receber o Prêmio Camões (em janeiro de 1996). O avião já estava descendo em direção ao aeroporto de Brasília e de repente passa-me pela cabeça isto: ‘todos os nomes’ (...) Todos os nomes foi bastante complicado e provavelmente não existiria se não tivesse coincidido com a procura dos dados da vida e da morte do meu irmão (Francisco de Sousa). Eu queria saber as circunstâncias da breve vida desse meu irmão. (...) Se não fosse essa história do meu irmão, talvez escrevesse um livro chamado Todos os nomes, mas seria outro totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me leva, no romance, a dar numa conservatória...”
Um tema constante na obra de Saramago é a solidão e a questão da identidade, da busca do “eu”, do alter ego. A busca de si mesmo através do outro ou dos outros. Segundo a Prof.ª Dr.ª Shirley de Souza Gomes Carreira da UNIGRANRIO, “a questão da identidade desenvolveu-se desde a postura de sujeito do Iluminismo, evoluindo para a concepção de sujeito sociológico, até atingir o que os teóricos definem como sujeito pós-moderno”. Esse novo sujeito saiu do individualismo para a socialização de valores. Nesse contexto, Saramago busca no fundo da alma humana um alter ego que está em todos nós. Essa busca se percebe principalmente em Ensaio sobre a cegueira e em Todos os nomes.
Todos os nomes é cronologicamente curto. Narra apenas um recorte da vida do Sr. José, única personagem nomeada na trama, homem de cinqüenta anos que trabalha há vinte e seis na Conservatória Geral do Registro Civil da cidade em que reside. Nada se sabe a respeito do Sr. José exceto sua residência (um pequeno anexo da Conservatória), trabalho e hábitos. Vive só, não há parentes nem relacionamento afetivo com alguém.
No entanto, a vida do Sr. José, demasiadamente pacata e pachorrenta, transforma-se depois que, por acaso, lhe cai nas mãos o verbete de uma mulher desconhecida. Algo estranho, até para ele mesmo, acontece: desperta em si um incrível interesse pela tal mulher. Ele, que sempre teve como único hobby colecionar recortes de pessoas famosas, de repente fica obcecado por aquela desconhecida, relegando as celebridades de sua coleção.
Delimitado o contexto da criação do livro e expondo ligeiramente a história e a personagem principal, passemos para o tema do trabalho: o diálogo. A priori, definamos o termo “diálogo”, segundo o dicionário Aurélio: troca ou discussão de idéias, de opiniões, de conceitos, com vista à solução de problemas, ao entendimento ou à harmonia; comunicação. Posto isso, podemos dizer que, apesar de não observarmos nenhum travessão ou aspas em todo o texto de Saramago, há diálogos, sim.
A forma como Saramago escreve é, no mínimo, inusitada, como já foi dito, o que torna a leitura tanto mais rápida quanto mais complicada. Rápida porque se passa de uma personagem para outra muito ligeiramente e complicada por requerer do leitor uma atenção maior, já que ele precisa interpretar as vírgulas como outros sinais de pontuação além da sua própria função de vírgula; como as interrogações, exclamações, pontos continuativos etc. Os diálogos, as frases e as orações, são pontuados com vírgulas, exceto quando ele usa um ou outro ponto continuativo ou final.
“Discussão de idéias com vista à harmonia”. Essa é a definição de diálogo que melhor se encaixa na conversação que se dá entre o ego e o alter ego do Sr. José, onde consciente e inconsciente se confrontam em busca de solução para angústias da personagem. O Sr. José conversa com as outras personagens da trama, consigo mesmo, com o teto e age até mesmo como expectador de uma conversa entre a sua razão e sua angústia. E neste último diálogo é que se observa algo muito interessante, pois ali nos reconhecemos no Sr. José, nos identificamos. Quando queremos muito fazer uma coisa e ponderamos demasiadamente os prós e contras, sempre conseguimos arrumar mais argumentos a favor do que contra o que queremos, mesmo que esses argumentos não sejam tão convincentes quanto deveriam.
À primeira leitura do texto de Saramago, o diálogo se dá de forma confusa, levando o leitor a crer que, por vezes, o Sr. José dialoga com o próprio narrador, mas há detalhes que revelam com quem ele está conversando em certos momentos como, por exemplo, no primeiro diálogo hipotético sugerido pelo narrador que se dá entre o Sr. José e o chefe da Conservatória: “É por estas razões que o Sr. José, mesmo que o submetessem ao mais apertado dos interrogatórios, não saberia dizer como e por que o tomou a decisão, ouçamos a explicação que daria...” após esse fragmento entra a fala do Sr. José e em determinado trecho ele refere-se à pessoa com quem fala: “...o chefe devia compreender que já não tenho idade para essas acrobacias...”.
Há diálogos que se passam na cabeça do Sr. José. Dele com ele mesmo. O ego e o alter ego. Um que quer e outro que não quer ou não sabe que quer.
Todos nós compartilhamos essa luta antagônica interior com o Sr. José. Aquela necessidade de explicar e criar razões (às vezes absurdas) para fazermos exatamente aquilo que queremos quando estamos “na dúvida”. Muitas vezes os argumentos que vão contra o que queremos nos impulsiona exatamente para aquilo. Acaba por ter efeito contrário.
E os conflitos do Sr. José vão além de argumentos contra e a favor. Ele se desafia. Conversando com a própria consciência, e fazendo isso conscientemente, ele desafia a si próprio a ir à escola em que a mulher desconhecida estudou para coletar mais dados para a sua busca. Busca que lhe dá um novo sentido para a vida, se é que ele possuía um anteriormente. Nessa acepção, o Sr. José se assemelha a “Sy”, personagem principal de Robin Williams no filme Retratos de uma obsessão, onde a solidão o leva a investigar uma família em particular e a colecionar fotos da mesma. Assim como o Sr. José, Sy queria fazer parte de uma família, ser aceito e ser amado.
Em geral os autores retratam a vida das personagens; suas ações e interações, mas o que acontece em Todos os nomes é que o autor retrata até mesmo os pensamentos da personagem principal e sugere situações hipotéticas com as quais ele poderia vir a se deparar. Saramago desnuda o Sr. José mostrando seus pensamentos, seus anseios, seus temores e seus conflitos internos.
Por tudo isso, é natural que se chegue à lógica conclusão de que Todos os nomes, assim como toda a obra de Saramago, é um romance complexo, mas cheio de questões inquietantes, perturbadoras e curiosas que estão presentes no inconsciente coletivo desde que o homem se descobriu como ser social e consciente de suas interações e valores.
Este texto é parte integrante do trabalho que Aline Vitória apresentou em 2005 para a disciplica Literatura Portuguesa IV, no 7º semestre de letras Vernáculas.
Aline Vitória é escritora, poeta e professora. Publicou poemas na "Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus - vol. II" e tem vários livros no prelo.