A polêmica sobre o sistema de cotas nas universidades é uma boa oportunidade para debater a desigualdade social no país.
Por: Valdeck Almeida de Jesus (*)
O sistema de cotas nas universidades públicas é um tema muito polêmico e tem gerado bastante controvérsia, e levantado muitas discussões, fundamentadas em diferentes posicionamentos ideológicos. A sociedade parece dividida quanto à adoção desse tipo de programa de ação afirmativa, que propõe a reserva de vagas oferecidas no vestibular das universidades públicas para alunos oriundos de escolas públicas e outros segmentos da população, considerados excluídos, como negros e índios. A questão social, no entanto, é a que parece ser o ponto principal desta discussão.
A iniciativa partiu das universidades estaduais do Rio de Janeiro, que levantaram o debate público sobre o processo de aprovação e aplicação do sistema de cotas em 2001. Não são poucas as questões sobre a adoção de políticas afirmativas e, em relação ao acesso às universidades, a reflexão social – e nacional – tem sido sobre o princípio de democratização, inclusão social e, especialmente, do combate ao racismo.
Políticos, antropólogos, sociólogos, jornalistas, líderes de comunidades voltadas para a defesa dos direitos humanos e tantas outras vozes de diferentes segmentos da sociedade se levantam, ora defendendo, ora criticando a adoção do sistema de cotas.
Em 9 de novembro de 2001, a partir de sugestões da sociedade aos parlamentares da Comissão de Educação e Cultura, foi aprovada a Lei Estadual 3.708/01, que implantou o sistema de cotas para estudantes autodenominados "negros" ou "pardos", em 40% (quarenta por cento) das vagas das universidades públicas do Rio. Esta lei passou a ser aplicada, inicialmente, no vestibular de 2002 da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Logo depois, outras instituições como a Universidade de Brasília (UNB) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) adotaram esse sistema, usando critérios como os indicadores socioeconômicos, ou a cor ou "raça" declarada pelos vestibulandos.
Com o objetivo de ampliar a discussão no país inteiro, foi instituído um Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes de escolas públicas, através do Projeto de Lei nº 3.627, do Executivo Federal, em 2004. Por este sistema também estariam contemplados os negros e indígenas em todas as instituições públicas federais. Pelo menos 50% das vagas ficariam comprometidas e reservadas da seguinte forma: 20% para negros, 20% para estudantes da rede estadual e 5% para deficientes físicos.
Temos, de um lado, os críticos desta medida, alegando que a desigualdade e a discriminação racial devem ser corrigidas com políticas públicas mais consistentes, que visem propiciar o acesso de grupos sociais desfavorecidos às mais diferentes oportunidades; e, de outro, os defensores do sistema de cotas, que não veem nisso qualquer forma de privilégio, mas um tipo de ação afirmativa que visa diminuir as desigualdades e restituir direitos negados, ao longo de anos, a um grupo que teve, incontestavelmente, menos oportunidades e que, portanto, se encontra em desvantagem.
A polêmica maior converge para as cotas raciais, onde a maioria dos não adeptos ao programa argumenta que este tende a aumentar a disputa entre brancos e negros, não vê a humanidade como uma raça única, e, por isso, acaba legitimando a segregação.
O CENÁRIO ATUAL
Recentemente, a polêmica das cotas ganhou mais repercussão, ressurgindo nas páginas dos jornais e na mídia, após pedido do Partido Democratas (DEM) para que fossem suspensas as cotas raciais de 20% nos vestibulares da Universidade de Brasília (UnB). Ressalte-se que nesse pedido os critérios socioeconômicos para o referido benefício não foram objetos de protesto. O foco recaía diretamente sobre a questão racial.
A ação ajuizada pelo DEM, ocorrida em abril de 2009, alegava que o sistema de cotas raciais da UnB violava preceitos fundamentais da Constituição, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, o preconceito de cor e a discriminação, o que interferia no próprio combate ao racismo.
No entanto, os pareceres encaminhados ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Procuradoria Geral da República (PGR) e pela Advocacia Geral da União (AGU) foram contrários à ação. A decisão ainda tem caráter provisório. O caso deverá ser julgado no mérito pelo plenário da Corte, provavelmente no início de 2010. Mas até lá os procedimentos de matrícula na universidade poderão seguir normalmente.
Ao negar o pedido do DEM, o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, alegou que as cotas são constitucionais, afirmando: “Embora a importância dos temas em debate mereça a apreciação célere desta Suprema Corte, neste momento, não há urgência a justificar a concessão da medida liminar.”
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enfatizou que os grupos sociais minoritários e que estão mais vulneráveis são amparados pela Constituição Federal. Gurgel citou que 35 universidades públicas brasileiras já adotam políticas afirmativas para negros. Destas, 32 já preveem algum tipo de mecanismo para facilitar o ingresso no ensino superior. De acordo com o procurador-geral, na eventualidade de o pedido do DEM ao STF ser concedido, uma ampla maioria de pessoas carentes seria beneficiada.
AÇÕES AFIRMATIVAS
O movimento negro brasileiro tem sido incansável no sentido de reivindicar do Estado a implementação de políticas para o combate à discriminação. Gradualmente, algumas conquistas começaram a ser alcançadas, até que, em 1995, fez-se mais cristalina a mudança da postura do Estado em relação à questão racial, quando o movimento negro brasileiro deu visibilidade às comemorações pelos 300 anos de resistência contra o racismo. O governo brasileiro só passaria a se comprometer publicamente nessa luta por ocasião de sua participação na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Social, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, estabelecida pela ONU, que aconteceu no período de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001.
O Brasil tem um passado histórico de escravidão que durou 350 anos. Os efeitos nocivos desse período perduram. Gerações de negros ainda sentem os reflexos do racismo, ainda que velado. Muitas oportunidades foram tolhidas da sociedade e por isso é necessário reparar esse erro histórico.
VISÕES CONFLITANTES
Atualmente 35 universidades públicas mantêm ações afirmativas no vestibular voltadas para estudantes negros. Dentre os grupos opositores e defensores dessas ações, dois manifestos, encaminhados ao STF defendendo suas posições, se sobressaem: o Manifesto dos 113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais (opositores) e o Manifesto em Defesa da Constitucionalidade das Cotas.
Segundo artigo intitulado “O Sistema de Cotas Raciais é Injusto?”, publicado na Revista da Semana, em 25/06/2008, essas duas correntes fundamentam seus pontos de vista sob as seguintes alegações:
1) Manifesto dos 113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais:
a; São as diferenças de renda, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior. As cotas raciais não promovem a igualdade, mas apenas acentuam desigualdades prévias.
b; Raças humanas não existem. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos de dez genes. Não é legítimo associar a cor da pele a ancestralidades e afirmar que as operações de identificação de "negros" com descendentes de escravos e com "afro descentes" são meros exercícios da imaginação ideológica.
c; As cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. É preciso elevar o padrão geral do ensino, mas, sobretudo, romper o abismo entre as escolas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas devastadas das periferias urbanas, das favelas e do meio rural.
d; As Leis raciais criam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros. Essa linha divisória atravessaria as salas de aula das escolas públicas, os ônibus que conduzem as pessoas ao trabalho, as ruas e as casas dos bairros pobres. Neste início de terceiro milênio, um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou.
2) Manifesto em Defesa da Constitucionalidade das Cotas:
a; As cotas significam uma mudança do Estado brasileiro na superação de um histórico de exclusão que atinge, de forma particular, negros e pobres.
b; Se uma pessoa negra é vítima de racismo e se tivemos um passado de 350 anos de escravidão, é mais do que legítimo tentar eliminar a obra da escravidão, que é a discriminação sofrida até hoje pelos que portam a aparência física dos africanos escravizados. Os argumentos genéticos dos “anticotas” são invocados ainda na tentativa de desqualificar a reivindicação por reparações aos descendentes de escravos no Brasil.
O debate sobre quem está certo ou errado continua. A desigualdade é flagrante, no entanto, e deve ser combatida. Muitos questionam se a adoção do sistema de cotas raciais não seria um racismo ao contrário e um privilégio que não cabe na seleção para o ingresso nas universidades, uma vez que o critério de admissão não deve levar em conta a cor da pele, mas a avaliação por igual do conhecimento de todos os candidatos, sem diferenciações. Outros podem alegar, ainda, que a medida mais democrática e justa seria o Estado oferecer um ensino básico de qualidade, para que todos tenham, futuramente, acesso ao bom conhecimento e, consequentemente, condições e oportunidades iguais diante de um vestibular.
Tais alegações podem, a um primeiro momento, ter sentido lógico no que se refere aos aspectos democráticos. Porém, se pararmos para pensar que o cenário não é tão simples assim, se levarmos em consideração os anos de desigualdade social e racial no Brasil e seus efeitos maléficos, podemos nos tornar um pouco menos resistentes no sentido de compreender que tratar de maneira diferenciada um grupo que teve menos oportunidades e que está em franca situação de desvantagem é uma tentativa de diminuir essas desigualdades e de se fazer justiça, reparando as distorções que vitimaram essas minorias e restituindo-lhes direitos que há muito lhes foram negados.
VALDECK ALMEIDA DE JESUS, 43, Jornalista, funcionário público, editor de livros e palestrante. Membro correspondente da Academia de Letras de Jequié, publicou os livros Memorial do Inferno: a saga da família Almeida no Jardim do Éden, Feitiço contra o feiticeiro, Valdeck é Prosa e Vanise é Poesia, 30 Anos de Poesia, Heartache Poems, dentre outros. Participa de mais de 30 antologias. Membro efetivo da União Brasileira de Escritores, organiza e patrocina o Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus de Poesia, desde 2005. Expõe seus textos no site www.galinhapulando.com
Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 24/11/2009
Alterado em 24/11/2009
Reproduzido no site da Universidade de Brasília:
http://www.unb.br/noticias/unbagencia/cpmod.php?id=48621